Um Astrônomo Estudante da Sabedoria Antiga
 
 
Carlos Cardoso Aveline
 
 
 
Efígie de Pedro Nunes no Padrão dos Descobrimentos, o monumento em Lisboa
 
 
 
Habitante do século 16, o cosmógrafo, astrônomo e matemático Pedro Nunes (1502-1578) foi um precursor da teosofia no mundo lusófono.
 
Seu conhecimento científico era usado para a arte de navegar ao redor do mundo. Seus estudos técnicos deram apoio prático às expedições portuguesas. Foi um dos grandes humanistas da Renascença europeia, o vasto renascimento cultural em cujo contexto ocorreu o ciclo dos Descobrimentos.  
 
Nunes acreditava na sabedoria universal e na fraternidade sem fronteiras, e foi um amigo pessoal de John Dee, o astrólogo, cosmógrafo e conselheiro da rainha Elizabeth I, que é citado nas Cartas dos Mahatmas. Um mestre de sabedoria menciona John Dee ao abordar os obstáculos enfrentados pelos grandes ocultistas da época em que a ciência moderna nascia:
 
“O enorme conhecimento dos Paracelso [1], dos Agrippa [2]  e dos Dee foi sempre contestado.” [3]
 
Nascido em 13 de julho de 1527, John Dee foi contemporâneo de Francis Bacon e William Shakespeare e tinha profunda confiança em Pedro Nunes. Em 1558, sofrendo tipos variados de perseguição e poucos meses antes de Elizabeth I subir ao trono, Dee escreveu em uma carta ao cosmógrafo Gerardus Mercator:
 
“Deves saber que, além de uma doença extremamente perigosa, (…) tenho suportado (…) muitas outras perturbações que atrasaram em grande medida os meus estudos e já as minhas forças não conseguem suportar o peso de um esforço e tarefa tais que quase requerem (…) trabalho próprio de um Hércules. Por isso leguei a minha obra, se ela não puder ser ultimada ou publicada enquanto eu próprio for vivo, a Pedro Nunes, de Alcácer do Sal, varão mais que erudito e ponderado, pessoa que para nós se mantém como eminência e pilar únicos das artes matemáticas. Não há muito roguei-lhe com insistência que, no caso de que lhe chegasse esta minha obra postumamente, a assumisse para si com benevolência e caridade, e que se servisse dela de todas as maneiras, como se fosse sua, e por último se dignasse completá-la, emendá-la e corrigi-la para pública utilidade dos homens de ciência, tal como se fosse inteiramente sua.”[4]
 
Cientista ético, Nunes conhecia as lutas que ocorrem na alma que busca a verdade. Realista, escreveu:
 
“É (…) próprio da fragilidade humana desacertar muitas vezes, coisa que penso pode vir a acontecer-me a mim. Julgo que é dever de todo homem de bem não dissimular os enganos dos outros, mas antes conduzir todos os homens, sempre que seja possível, das trevas da ignorância para a luz da verdade.”[5] 
 
Vivendo na mesma época que Giordano Bruno (1548-1600) e que o português Damião de Góis (1502-1574), Pedro Nunes considerava que todo saber deve ser colocado a serviço da vida:
 
“… Porque é dever de homem honesto não ocultar o saber que possui, mas antes comunicá-lo para proveito de todos.” [6]
 
Segundo o estudioso Joaquim de Carvalho, Pedro Nunes viveu tanto a pesquisa original como a reflexão erudita:
 
“Comprazia-se em salientar as raízes antigas de concepções modernas, em abonar com a autoridade de gregos a sua própria opinião e em pôr a nu o erro de contemporâneos relativamente às suas próprias explicações.” [7]
 
Nunes estudou astrologia, pois fez algumas recomendações e conselhos com base nesta área de conhecimento. Pelo menos um dos seus conselhos astrológicos à nobreza lusitana está documentado de maneira palpável, e não faria sentido pensar que este foi um evento inteiramente isolado.[8]
 
A nação portuguesa sofreu com a doença do antissemitismo, mas também possui uma longa tradição humanista. De origem presumivelmente judaica [9], Pedro Nunes foi apoiado pelo trono do seu país até completar sua encarnação, em 11 de agosto de 1578, e sua memória continuou a ser respeitada desde então. Por outro lado, é pouco conhecido o fato de que Pedro Nunes foi membro destacado de uma fraternidade internacional de cientistas e místicos.
 
A Ética Universal
 
Em ensaio publicado em 2002, Ana Maria Tarrío escreve sobre a “República dos Sábios” que transcendia as fronteiras nacionais e ideológicas da Europa, no século 16.
 
Diz ela:
 
“…Tentamos situar e compreender Pedro Nunes como integrante da ‘Respublica litterarum’ europeia. [Em uma carta, John] Dee dirige-se a Mercator e a Nunes como membros de um reino supranacional, um reino de racionalidade e de troca de saber que poderia significar uma alternativa às intransigências dogmáticas da Reforma e da Contra-Reforma, às contendas internas e internacionais que dividiam e castigavam a Europa dos seus dias e tinham ameaçado seriamente a sua própria vida e os seus estudos.”
 
Ana Maria prossegue:
 
“Os mareantes e cosmógrafos do ‘Mundus Novus’, constantemente enfrentados pelo imprevisto, a repentinas correntes oceânicas, a novas ilhas e mundos possíveis, enfrentavam uma ‘navegação ao largo’ bem distante do velho mar fechado, o ‘Mare Nostrum’ dos romanos. [10] Os seus ‘studia’ portanto haviam naturalmente de caraterizar-se por levantar um novo universo de imprecisões, com muitas mais dúvidas do que certezas. Por isso Pedro Nunes, Gerardo Mercator e John Dee podiam encontrar, pelo menos como alternativa intelectual, um espaço mais adequado na República humanista europeia, república distanciada das verdades e certezas dogmáticas, reino de uma minoria letrada que podia entender-se supranacionalmente, por cima da violenta repartição contemporânea do mundo.”
 
“Pedro Nunes utilizava a linguagem humanista, linguagem europeia e simultaneamente portuguesa. A sua obra situou a Lusitânia perante os olhos do mundo de uma maneira mais profunda e duradoura do que os próprios descobrimentos. Consciente da liderança histórica que Portugal protagonizava, pelo dom extraordinário de Deus ou do Destino, ele contribuiu para a redução do elemento de acaso que havia nos descobrimentos: ‘as mais maravilhosas… conjeturas que as de nenhuma outra gente do mundo’. [11] Aplicando a ciência sobre esta extraordinária conjuntura, conseguia a mais difícil empresa: dominar e gerir mediante o próprio mérito as circunstâncias históricas que lhe haviam tocado viver. Neste sentido, Nunes novamente encarnou um motivo central do humanismo: a ‘nobreza de espírito’ que supera os acasos fortuitos da linhagem, o património ou o poder político.” [12]
 
Até aqui, Ana Maria Tarrío.
 
A nobreza de espírito era, pois,  a base essencial da República Humanista. Cada um dos seus membros era profundamente leal a seu próprio país. Ao mesmo tempo, eles cooperavam entre si num plano superior de consciência. Assim plantavam as sementes de uma ampla cooperação internacional num plano externo, visível. 
 
A experiência é válida para o século 21: os amigos da sabedoria devem zelar pelas nações, promovendo ao mesmo tempo a cooperação internacional e a boa vontade entre os países. Cabe a eles abrir espaço para a paz e não para a guerra, estimulando a ajuda mútua entre todos.
 
O verdadeiro cientista tem coragem suficiente para colocar a verdade acima do dinheiro e do poder mundano. O amigo da verdade segue a voz da sua consciência. Ele sabe que não pode haver separação entre ética e conhecimento, ou entre ciência e respeito pela vida.  
 
NOTAS:
 
[1] Veja o artigo “Paracelso e o Livro da Natureza”.
 
[2] Heinrich Cornelius Agrippa (1486-1535), médico, soldado, escritor e ocultista alemão. Entre suas principais obras está “Da Filosofia Oculta” (cerca de 1510). (Nota da edição brasileira de “Cartas dos Mahatmas”)
 
[3] “Cartas dos Mahatmas”, Editora Teosófica, Brasília, 2001, edição em dois volumes. Ver volume I, carta número 1, p. 39.
 
[4] “Pedro Nunes e Damião de Góis: Dois Rostos do Humanismo Português”, Coordenação editorial de Aires A. Nascimento, Guimarães Editores, Lisboa, 2002, 179 pp., ver pp. 59-60.
 
[5] Palavras citadas no livro “Pedro Nunes e Damião de Góis: Dois Rostos do Humanismo Português”, Guimarães Editores, Lisboa, 2002, 179 pp., ver p. 67.
 
[6] “Pedro Nunes e Damião de Góis: Dois Rostos do Humanismo Português”, obra citada, pp. 73-74.
 
[7] “Pedro Nunes e Damião de Góis: Dois Rostos do Humanismo Português”, obra citada, p. 31.
 
[8] O conselho foi dado a D. Catarina de Áustria, esposa do rei português D. João III. Dizia respeito à necessidade de retardar a entrega do reino a D. Sebastião, cujo reinado poderia ser instável e breve. Ver “Pedro Nunes e Damião de Góis: Dois Rostos do Humanismo Português”, p. 87. Pedro Nunes, aliás, foi professor de Dom Sebastião. O reinado do jovem foi de fato breve e instável, e terminou com a morte do rei em agosto de 1578, por coincidência o mesmo mês e ano em que morre o seu mestre Pedro Nunes.
 
[9] “Pedro Nunes e Damião de Góis: Dois Rostos do Humanismo Português”, obra citada, pp. 74-75.
 
[10] Como disse Pedro Nunes, os pilotos antigos nem sequer usavam quadrantes e astrolábios “por não caberem nisso grandes erros, por os mais dos dias haverem visto a terra e saberem onde estão”, Obras, vol. I, 1940, p. 176. (Nota de Ana Maria Tarrío)
 
[11] Obras, vol. I, 1940, p. 175. Passo comentado por O. T. Almeida, 1995, pp. 350-352. (Nota de Ana Maria Tarrío)
 
[12] Da revista “Oceanos”, número 49, janeiro/março 2002, edição especial sobre Pedro Nunes, 152 pp., ver p. 105. Esta revista trimestral foi editada pela Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses.
 
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O texto “Pedro Nunes e a Teosofia” foi publicado em nossos websites associados dia 20 de julho de 2019. Uma versão inicial dele, sem indicação de nome de autor, faz parte da edição de  agosto de 2014 de “O Teosofista”, página 04. Em outubro de 2023, o artigo foi ampliado.
 
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Veja nos websites associados os artigos “A Arte de Descobrir o Brasil”  e  “O Brasil Universalista”.
 
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