Pomba Mundo
 
Afonso Lopes Vieira
 
 
o-ninho
 
 
 
Subiu àquela árvore perfeita,
– que dá flor e dá fruto e os ramos deita
para espalhar a sombra e ser o abrigo
de toda a ave que vem ter consigo, –
subiu àquela árvore a criança:
e aqui fincou a mão, e ali ajeita
o pezinho no tronco, e sobe, e avança,
e treme, e deita a mão devagarinho
e rouba um ninho!…
 
O homem roubou a ave. – Ainda não sente,
ele, o do sofrimento, o da Razão,
o laço que anda, carinhosamente,
ligando o seu destino ao da criação.
 
Ainda rouba, e caça e, com furor,
espanca o animal que, no caminho,
mais para trás ficou, – como uma flor
mais longe está do olhar de um passarinho…
 
Ainda é aquele homem, o cocheiro
que por essa ladeira eu vejo rir
quando despede o pingalim certeiro
sobre os cavalos mortos de a subir!
 
Ele ainda é: a fera que anda em pé.
O tigre, às vezes santo. O malfadado
que é mau, quem sabe?, por que foi criado!
 
Quanto tempo levou na alminha clara
das aves, este instinto a germinar,
até que adquirissem a ciência rara
de saberem seu ninho arquitetar?
 
Quanto passado e longo sofrimento,
que primitiva dor, aflita ânsia,
(assim se formam asa e pensamento)
quantas fugas de rojo esvoaçadas
nessa medrosa e mal voada infância,
sem saberem fazer, desabrigadas,
os ninhos que, depois, já amorosos,
são a paga dos dias dolorosos!
 
Quanto passado e longo sofrimento
viveram elas, até que enfim, um dia,
de pais a filhos este entendimento
herdassem, como o canto e a alegria…
 
Igual amor aprendem homem e asa,
na mesma evolução, igual carinho:
o homem sorri, e já levanta a casa,
a ave gorjeia, e já constrói o ninho.
 
Ah, como a Vida acaba de sofrer,
ó criancinha rústica e suave!
 
Não pode haver Beleza enquanto houver
um homem que destrua um ninho de ave.
 
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Da obra “Ar Livre”, de Afonso Lopes Vieira, Livraria Editora Viuva Tavares Cardoso, Lisboa, Portugal, 1906, 211 pp., pp. 47-50. A ortografia foi atualizada. O poeta Afonso Lopes Vieira viveu de 1878 a 1946 e esteve ligado ao movimento cultural Renascença Portuguesa, na cidade do Porto, no início do século 20.
 
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