Conto Chinês Antigo Revela o
Poder Mágico do Respeito pela Verdade
 
 
Wang Tu
 
 
 
A fronteira entre o animal e o humano é mais
complexa do que se pode pensar à primeira vista
 
 
 
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Nota Editorial de 2017
 
A narrativa simbólica a seguir foi escrita durante
um  período de paz ininterrupta na China: a dinastia
Tang, entre os anos de 618 e 907 da era cristã.
 
O conto tem uma força decisiva no século 21,
porque Wang Tu mostra o caráter verdadeiramente
animal  da vida humana quando as pessoas são governadas
pelo mero instinto. A fronteira entre o animal e o humano
é mais complexa do que se pode pensar à primeira
vista.[1] Cabe identificar e transcender as várias formas de
animalidade disfarçada como humana e como espiritual.
 
A história do espelho exemplifica também o que ocorre
quando um ser qualquer tenta apresentar-se aos outros como
se fosse espiritualmente mais evoluído do que realmente é.
 
Como chaves para a interpretação do conto, cabe lembrar
que o dragão simboliza o sábio e a sabedoria, e o espelho
representa a força da verdade. Neste conto o espelho
 constitui o talismã que dá acesso ao conhecimento divino.
Diante dele as diferentes formas de  falsidade se desfazem.
 
O texto é reproduzido do livro “Maravilhas do Conto
Chinês”, Ed. Cultrix, SP, 1964, 251 pp., pp. 15 a 26.
A tradução ao português é de Alda de Carvalho Ângelo.
 
(Carlos Cardoso Aveline)
 
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A História de um Velho Espelho
 
Wang Tu
 
 
Natural de Fen-Ying, Heú Seng, que viveu no reinado dos Suei, era um homem estranho. Durante muito tempo fui seu discípulo e tinha por ele a veneração que a um tal mestre é devida. Ao morrer, legou-me um espelho, dizendo:
 
– Com este espelho, verás que todos os maus espíritos se afastarão de ti.
 
Prometi ao mestre agonizante que guardaria ciosamente seu legado. Era um espelho de bronze, de oito polegadas de largura, com um suporte traseiro em forma de unicórnio agachado. Nos quatro cantos da sua parte anterior, estavam pintadas quatro figuras de animais, – tartaruga, dragão, fênix e tigre – cercada, cada uma, de oito diagramas do Yi-king [2]. Por sua vez, tais diagramas eram cercados pelos símbolos das doze constelações do Zodíaco. Finalmente, na sua parte fronteira, viam-se vinte e quatro caracteres arcaicos. A caligrafia, de traços abruptos, parecia, à primeira vista, do estilo Li-Chu. Contudo, ao examiná-la, constatava-se que fugia a todas as regras caligráficas. Explicou-me, então, o mestre, que eram os sinais correspondentes às vinte e quatro condições atmosféricas.
 
Ao se colocar o espelho contra a luz, distinguiam-se nitidamente, contra a superfície metálica, os desenhos do verso. Suspenso como gongo, produzia, a cada batida, nota de ressonância cristalina, que se prolongava pelo dia todo.   Por tais virtudes, diferia extraordinariamente dos espelhos comuns. Fazia jus, pois, à admiração sem reservas de Heú Seng, homem genial, que sempre o considerara um objeto divino.
 
O mestre tinha-me dito:
 
– Outrora, o Imperador Huang-ti mandou forjar quinze espelhos. O primeiro tinha a largura de um pé e meio e simbolizava a lua cheia. A largura dos demais ia aumentando, de um para outro, de uma polegada. O nosso é, pois, o oitavo dos espelhos de Huang-ti.
 
Apesar de o reinado de Huang-ti pertencer a era muito remota para que possamos fazer fé na lenda dos espelhos, pessoalmente nunca duvidei de quanto me ensinara meu eminente mestre.
 
Será que para nós, os mortais, a possessão e perda de um objeto misterioso é indício fatal de algum capricho do destino? O povo gosta de contar a história daquela família Yang que, após ter adquirido os anéis mágicos, começou a prosperar sem saber como nem por quê; ou a aventura de um certo pai Tchang que, tendo perdido sua espada enfeitiçada, não tardou também a perder a vida. Irá semelhante drama acontecer-me, a mim que, sob o peso da imensa desgraça do século, passo os dias mergulhado na indolência e na melancolia? Através das peripécias da tormenta, tudo perdi, tudo: amigos, parentes e bens. Arrasto minha humilde existência sem grande significado. Ai! como se minha infelicidade não estivesse ainda no auge, foi preciso que até o meu espelho antigo desaparecesse!
 
Permitam-me, pois, nas linhas que vou traçar, relembrar algumas das maravilhosas aventuras que o divino espelho realizou durante o tempo em que esteve em meu poder. Daqui a dez ou cem mil anos, se alguém, por acaso, o reencontrar, saberá, ao menos, a origem desse misterioso objeto.
 
No ano sete do período Tai-yei, na quinta lua, pedi demissão do cargo de censor imperial e voltei para Ho-tong, onde, pouco depois, assisti à morte de meu mestre Heú Seng. Na lua seguinte, regressei a Tchang-ngan. Parei na pousada de Tchen Yong, no bairro de Tchang-lo-po. O estalajadeiro tinha então, sob sua guarda, uma escrava muito bonita. Uma vez instalado em meu quarto, fiz as abluções com o auxílio do espelho. Tão logo o viu, a escrava atirou-se ao chão, batendo a fronte no solo com tanta força que o sangue começou a escorrer.
 
– Não posso mais ficar… – murmurou ela, toda trêmula. Chamei o estalajadeiro e pedi-lhe que me explicasse a razão dessa inesperada cena.
 
– Há dois meses, – disse-me ele – trouxe-a gravemente doente um viajante do Este. Ao partir novamente, confiou-ma com estas palavras: “Voltarei para buscá-la”. Mas nunca mais voltou. Ignoro de todo a origem desta moça.
 
Temendo que ela fosse um demônio disfarçado, ameacei-a com o espelho na mão. E ela, suplicante:
 
– Poupa-me, que me mostrarei sob minha verdadeira forma!
 
Cobri o espelho e prometi-lhe:
 
– Confessa a verdade, e mostra-te sob tua forma primitiva, que te pouparei.
 
A escrava, depois de muitas mesuras, começou seu relato:
 
– Sou uma velha raposa de alguns milhares de anos de idade. Tive, por toca, a sombra de um grande pinheiro, defronte do templo do Monte Hoa. Havia muito que eu me metamorfoseava para seduzir os homens. Mas a divindade da montanha não cessava de me perseguir. Andei foragida, escondendo-me por toda parte, entre o Rio Amarelo e o Rio Wei. Tornei-me, um dia, a filha de Tchen Se-kong, de Hia-koei. Já moça, desposei um camponês, mas não foi bom casamento. Escapei, em seguida, para o Este. Ao passar pela cidade de Han, recolheu-me um viajante. Chamava-se Li-u-hoa. Era um verdadeiro bruto. Obrigou-me a segui-lo durante anos, até o dia em que me abandonou aqui. Como poderia eu prever que iria cair sob o golpe de um espelho divino? Eis-me arruinada! Não mais poderei dissimular meu verdadeiro semblante.
 
– Velha raposa! – vociferei com desprezo – Não é então com a intenção de nos prejudicar que assumes forma humana?
 
– Eu queria somente viver com os homens, sem pensar no mal que daí pudesse resultar. Mas as divindades não gostam nem de minhas evasões nem de minhas metamorfoses. Eis por que desejam a minha perdição.
 
– Achas que é possível eu poupar-te?
 
– Seria grande honra para mim! Mas é tarde demais. Uma vez denunciada pelo espelho celeste, já não poderei escapar. Que vergonha quando eu tiver de aparecer diante de ti sob minha forma original! Guarda, por favor, esse espelho no seu estojo. Matar-me-ei, quando me for dado, pala última vez, embriagar-me com vinho.
 
– Não vais fugir, se eu guardar o espelho?
 
– Fugir?! – exclamou ela, soltando uma gargalhada. – Eu, que acabo de recusar o favor que querias prestar-me, poupando-me? Fugir ardilosamente não seria abusar, de maneira abominável, da tua bondade? Asseguro-te que o espelho me cortou toda e qualquer possibilidade de fuga. Só te peço que me prolongues a vida por mais algumas horas, a fim de que eu possa, ao menos, morrer alegremente embriagada.
 
Guardei o espelho no estojo. Mandei vir vinho e convidei os hóspedes e vizinhos para assistirem à festa em honra da escrava. Esta embebedou-se sem freio e, levantando-se completamente embriagada, cantou e dançou, agitando as mangas. Seu canto dizia:
 
Espelho divino, espelho divino, tem piedade de mim!
Depois que me transformei,
Quantas vezes não tenho mudado de nome e de vida?
Viver é felicidade; morrer não é tão lamentável assim.
Para que me demorar mais neste cantinho do mundo? …
 
Interrompeu a canção e, cumprimentando a assembleia, caiu por terra. Sobre o solo estava uma verdadeira raposa, rígida, morta. Os expectadores, ao voltarem a si do espanto, outra coisa não sentiram pelo pobre animal senão piedade.
 
No ano oitavo do período Tai-yei, no primeiro dia da quarta lua, houve um eclipse do sol. Nesse dia, estava eu de guarda no secretariado do palácio imperial. De quando em quando, ia repousar um pouco no pequeno quarto superior, que ficava bem em cima do meu escritório. Subitamente, escureceu o dia. Funcionários vieram anunciar-me eclipse. Levantei-me e tirei o espelho do estojo. Parecia embaçado e privado do seu brilho habitual. Mal tinha eu me recuperado da surpresa, quando novamente reluziu a superfície metálica do espelho: o sol acabava de emergir da sombra que o ocultara.   Compreendi, então, que o espelho refletia os movimentos dos grandes astros. E, desde esse dia, a cada eclipse, não deixava eu de observar idêntica mudança no espelho.
 
Na oitava lua do mesmo ano, meu amigo Sié Ya comprou uma espada de cobre, de quatro pés de comprimento, se incluído o punho; neste se viam, gravadas, as figuras de um dragão e de uma fênix, com chamas à esquerda e ondas à direita. O brilho deslumbrante provava que a arma não era um ornamento vulgar. Certo dia, Sié veio visitar-me, trazendo a espada consigo.
 
– Fiz a experiência, – disse-me – nos dias quinze de cada lua. Quando o astro está em sua plenitude num céu sem nuvens, a espada brilha por si só num quarto escuro, espalhando claridade a uma dezena de pés à sua volta. Sei que tens grande amor pelos objetos antigos e pelas raridades curiosas. Queres que te mostre minha espada esta tarde?
 
Aceitei a proposta com entusiasmo. À tarde, o céu estava claro como desejávamos. Encerramo-nos, eu e meu amigo, num quarto bem fechado, no qual reinava a mais completa escuridão. Tirei o espelho do estojo e coloquei-o sobre um banco. Pouco a pouco, o espelho começou a projetar uma claridade que iluminou todo o quarto. Os móveis apareceram nitidamente como em pleno dia. Meu amigo colocou, então, sua espada ao lado do espelho. A arma, porém, perdeu seu brilho próprio. Muito surpreendido, pediu-me ele que guardasse o espelho, o que fiz sem demora. A espada pôs-se a brilhar novamente, mas, amedrontada, emitia um brilho que não ultrapassava dois pés de distância. Meu amigo suspirou:
 
– Existe também, acaso, hierarquia entre os objetos sobrenaturais? Devem os inferiores manifestar submissão diante dos superiores, como nós?
 
Um ano depois, fui nomeado subprefeito do distrito de Joei. Defronte da sala da prefeitura, havia uma açofeifeira gigante, velha de muitos séculos, cujo tronco media mais de uma braçada de grossura. A chegada de cada prefeito devia ser comemorada com uma libação em honra da árvore colossal, a fim de que nenhuma desgraça sobreviesse ao recém-vindo.   Declarei aos habitantes da vila que um demônio não exerceria má influência senão sobre aqueles que se prestassem a tal, e que toda superstição deveria ser reprimida.   De joelhos, com a fronte tocando o solo, suplicaram-me meus subordinados que respeitasse o culto dessa árvore. Ordenei, contrariado, que fizessem a libação e a oferta tradicional dos sacrifícios ao espírito da açofeifeira.   No fundo de minha alma, estava eu, porém, persuadido de que a árvore deveria estar enfeitiçada por gênios maus, invisíveis, que exploravam, havia muito tempo, a estupidez das gentes da terra. À noite, em segredo, suspendi meu espelho a um dos ramos da árvore temida.
 
Quando soou o gongo da segunda vigília, um formidável estrondo quebrou o silêncio noturno, sacudindo o edifício da prefeitura qual um raio. Saltamos do leito. Pela fresta da janela, vimos que a açofeifeira estava envolta num grande turbilhão de vento e chuva, enquanto relâmpagos rasgavam a escuridão.
 
No dia seguinte, descobriu-se a carcaça de uma enorme serpente, de escamas violáceas, cauda sanguínea, cabeça esverdeada com chifres brancos. Retirei o espelho e ordenei que levassem o cadáver da serpente para queimá-lo fora da aldeia. A árvore foi abatida por minha ordem. Debaixo das suas raízes, descobriu-se a existência de um largo e profundo fosso, no qual se viam ainda traços da presença do réptil. O fosso foi entulhado. Desde então, nada mais de extraordinário aconteceu na aldeia.
 
Certo inverno, ocupando eu ainda o posto de subprefeito, recebi ordem de inspecionar toda a região de Hopei assolada pela fome. Valendo-me da autoridade imperial, mandei franquear os silos regionais e os celeiros militares às populações famintas. Por infelicidade, à fome seguiu-se uma terrível epidemia. Tchan Long-ki, pequeno funcionário a meu serviço, viu cair doente, ao mesmo tempo, toda a sua família, que se compunha de uma dezena de pessoas. Apiedei-me dele. Emprestei-lhe o espelho, que, naquela mesma tarde, foi exposto em sua casa. Num átimo, levantaram-se, sobressaltados, todos os doentes, declarando que tinham visto Long-ki trazer a lua para diante de seus leitos e que a pálida claridade do astro havia-lhes penetrado os membros e as entranhas, provocando uma sensação glacial. Imediatamente, baixou-lhes a febre.    Pouco tempo depois, estavam todos curados.
 
Acreditando poder, dessa forma, curar a multidão de doentes, todas as noites, discretamente, sem chamar a atenção para o espelho, fiz com que o precioso instrumento fosse levado de casa em casa. Certa tarde, um ruído nítido e prolongado saiu do estojo, fato que muito me intrigou. No dia seguinte, Long-ki veio dizer-me que tinha tido um sonho estranho. Fora visitado por um fantástico personagem, com cabeça de dragão coroada de púrpura, e corpo de serpente vestido de vermelho.  O visitante declarara ser o espírito do espelho antigo e ter o nome de Tseu Tseng.
 
– Em troca do que fiz por tua família, – disse o espírito – venho pedir-te um favor. Apresenta minhas desculpas ao Senhor Wang [3] e diz-lhe que não desejo mais combater a peste contra a vontade do Céu, que impôs esse castigo aos homens. De resto, ao cabo de uma lua a peste estará terminada. Por que cansar-me em vão?
 
Comovido com a misteriosa mensagem, interrompi imediatamente as deambulações noturnas do espelho. Uma lua mais tarde, conforme havia sido predito no sonho do funcionário, a peste começou a diminuir de violência.
 
Vários anos se passaram. Um dia meu irmão Ki, adjunto da prefeitura, demitiu-se do cargo a fim de efetuar uma peregrinação às montanhas inspiradas e às ribeiras encantadas dos grandes rios do Império.   A princípio, opus-me a tal desígnio.
 
– Vivemos – disse-lhe eu – num século de perturbações. Salteadores e trapaceiros infestam os caminhos. Com que segurança poderás tu, pois, contar? Ademais, eu e tu estamos ligados pelo mesmo sopro e nunca nos separamos por muito tempo. Pensas, acaso, em partir para não mais voltar, renunciando assim, à semelhança dos sábios de antanho, ao mundo dos humanos? Como poderei eu suportar, nesse caso, tua eterna ausência?
 
Ao dizer isso, encheram-se-me os olhos de lágrimas. Mas meu irmão insistiu:
 
– Minha resolução está tomada e não volto atrás. Tu, meu irmão, que és de larga visão, deves ter compreendido que “o mais simples dos mortais não deixa dobrar sua vontade”, conforme disse Confúcio. E, afinal, quanto vale a vida humana? Cem anos, no máximo; e cem anos passam num piscar de olhos! Nossas alegrias e aflições, que são elas senão caprichos da sorte? Agir em liberdade, de acordo com nossos pensamentos, é, creio eu, o grande ensinamento dos antigos sábios.
 
Despedi-me, com tristeza, de meu irmão. Pediu-me ele, ao partir:
 
– Agora que devo errar ao acaso, por caminhos nebulosos, por cumes inacessíveis, não queres confiar-me teu tesouro, o espelho antigo? Esse precioso espelho não pertence ao mundo vulgar.
 
– A ti, tudo dou, sem qualquer pesar – suspirei, estendendo-lhe o espelho.
 
Meu irmão partiu sem dar-me contas do seu itinerário. Só voltou ao cabo de três anos. Ao devolver-me o espelho, declarou:
 
“ – Teu espelho é uma verdadeira maravilha. Depois que nos separamos, cuidei de escalar, primeiramente, os rochedos do Monte Song. Ora ascendia pelos aclives rochosos, ora repousava nas platibandas de mármore. Um dia, cheguei a uma gruta abobadada, escura e profunda, que formava um aposento dentro do qual caberiam seis ou sete pessoas. Entrei nesse abrigo selvático com a intenção de ali esperar pela madrugada. Fora, a lua brilhava em todo o seu esplendor. Por volta da décima segunda vigília, entraram, de súbito, na caverna, seres humanos. Um tinha o rosto tártaro e ossudo circundado de barbas brancas e encimado por sobrancelhas igualmente alvas. Chamava-se Pai Tchen. O outro, pequeno e escuro, tinha a cara larga dissimulada por barbas grisalhas e sobrancelhas espessas. Atendia pelo nome de Mao. Ao me avistar, ambos os desconhecidos demonstraram surpresa.
 
“ – Quem está ai? – perguntaram.
 
“ – Um amante de solidão, de grutas e de curiosidades selvagens – respondi-lhes, apresentando-me.
 
“Os dois estranhos vieram sentar-se junto de mim e ficamos a conversar por longo tempo. Suas palavras demonstravam, frequentemente, um sentido espantoso, extraordinário. Comecei a perguntar-me se não seriam eles, porventura, demônios disfarçados. Às escondidas, deslizei a mão para trás e, de um golpe, retirei o espelho do estojo. Ambos gritaram e caíram ao solo. O pequeno transformou-se em tartaruga, e o tártaro em macaco. Deixei o espelho exposto até o amanhecer, de medo de que os cadáveres se levantassem.
 
“Quando franqueava a Montanha Ki, vi-me diante de uma fonte brotando de sob um rochedo. Logo abaixo dela, havia um tanque cheio de água esverdeada. Perguntei a um lenhador que tanque era aquele. Respondeu-me o interpelado:
 
“ – É o tanque sagrado. A gente da aldeia depõe ali suas oferendas, nas oito festas das quatro estações do ano, rezando e pedindo graças ao espírito da fonte. Uma única vez que haja negligência na prestação do devido tributo, imediatamente se encrespam as águas; surgem delas nuvens negras, e uma tempestade de granizo assola os campos, fazendo transbordar os diques do rio.
 
“Sem nada dizer, tirei o espelho do estojo e aproximei-o do tanque. Subitamente, a água se pôs a borbulhar com ruído trovejante. Todo o conteúdo do tanque se levantou e transbordou até a última gota. A água derramada correu pelo terreno até duzentos passos além, ali formando larga poça. No tanque vazio, ficou à mostra, então, um peixe de mais de dez pés de comprimento, com o corpo coberto de escamas verdes e amarelas de brilho metálico, cabeça vermelha, testa branca e focinho pontiagudo. O animal parecia um dragão, mas não escumava. Dir-se-ia uma serpente com chifres! Estorcia-se, aprisionado no lodo.
 
“A fim de acalmar os expectadores apavorados, persuadi-os de que o animal pertencia a uma espécie de esqualo que, uma vez fora da água, não podia fazer grande mal.
 
“Alguns homens mais corajosos puseram-se a escarvá-lo e a assar-lhe as postas. A carne era saborosa, mas deveras gordurenta. Regalei-me com ela por muitos dias.
 
“Na planície de Pien, tive por hospedeiro um homem chamado Tchang Ko, cuja filha estava doente. Sofria dores todas as noites e lamentava-se de modo atroz. A família não sabia de onde vinha o mal. Explicaram-me apenas que a moça sofria havia mais de ano. De dia, a doente passava bem, mas, à noite, que tortura! Adiei minha partida a fim de passar uma noite com essa infeliz família. Mal começaram os queixumes da jovem, aproximei-me de seu leito, brandindo o espelho. A doente gritou:
 
“ – Foi morto o jovem de chapéu grande!
 
“Descobriram, debaixo da cama, o corpo de um enorme galo, que fora ferido mortalmente. Era uma ave de sete ou oito anos, o orgulho do galinheiro de meu anfitrião.
 
“Quando me encaminhava para o sul, aconteceu-me, certo dia, atravessar o Yang-tsé-kiang. No meio do rio, nuvens escuras começaram a juntar-se, de súbito, quase ao nível das águas. Os barqueiros empalideceram, pressentindo o pior. Subi para a ponte com o espelho na mão. Uma claridade penetrou as ondas, a água fez-se transparente, e pôde-se mesmo enxergar o leito profundo do Grande Rio. Cessou o vento e as nuvens se dissiparam. Ao cabo de um instante, alcançamos a outra margem do Fosso Celeste [4].
 
“Outra feita, durante a travessia do Tché-kiang, fomos surpreendidos pela terrível maré que torna o rio tão célebre quão temido. Essa maré, cuja altura chegava a várias dezenas de pés, ao cair nas proximidades da embocadura, produzia um estrondo feroz, que podia ser ouvido a cem lis [5] de distância.
 
“ – Ai vem a maré! – gritaram os barqueiros. – Interrompamos a travessia e voltemos imediatamente para a margem, se não quisermos servir de pasto aos peixes!
 
“Estendi meu espelho para as vagas espumantes. Oh! maravilha! No meio da vaga tumultuosa, abriu-se bruscamente um sulco de uns cinquenta passos de largura, como se uma espada mágica houvesse cortado em dois pedaços o rio demente. E, no meio dessa vala milagrosamente aberta no seio da corrente, viam-se fugir, em cardumes, habitantes aquáticos de todas as espécies, assustados, sem dúvida, por aquela súbita transparência de seu mundo, enquanto o barco ia deslizando, tranquilamente, para a margem desejada.
 
“Nas minhas caminhadas noturnas pelas montanhas ou pelos vales, levava sempre comigo o espelho a descoberto; seu brilho me guiava, qual o de uma lanterna, na escuridão mais intensa. À minha passagem, os pássaros, despertados, fugiam dos ninhos, assustados pelo clarão insólito do divino espelho.
 
“Durante as minhas peregrinações sem destino, homens dotados de estranhos poderes vieram ao meu encontro. Uns faziam-me presentes de livros raros, de mais alta antiguidade; outros me ensinavam magia ou contavam-me histórias sobrenaturais.
 
“Cansado da solidão e dos lugares ermos, eu retomava contato, de tempos a tempos, com os seres humanos. Certa vez, cheguei à aldeola de Fong, cujo primeiro magistrado era meu amigo. Esperava-me com impaciência, pois desejava que eu tentasse a cura de três jovens possessas. Fui morar com a família das doentes, cujo pai cuidava de obsequiar-me do melhor modo possível. As três irmãs habitavam um pequeno pavilhão isolado. Ao anoitecer, tratavam de se enfeitar com mil cuidados. Quando era já noite avançada, fechavam-se no pavilhão e apagavam logo o candeeiro. De fora, ouviam-se falando e rindo com estranhos. De manhã, recusavam-se a revelar seu segredo, apesar das súplicas dos pais. As três filhas emagreciam dia a dia e perdiam o gosto pela vida. Mas, quando alguém se propunha impedir-lhes os inquietantes manejos no quarto enfeitiçado, ameaçavam matar-se. Tudo fora tentado para combater o mal, mas sem resultado.
 
“Depois de ter examinado bem o pavilhão das três possessas, mandei cortar, com serra, quatro barras da janela, sem as retirar, contudo, evitando assim qualquer suspeita por parte das enfermas. Chegou a noite; o pai vigilante deu o primeiro sinal:
 
“ – Já estão no pavilhão!
 
“Em silêncio, fomo-nos postar debaixo da janela, atentos aos menores ruídos. Quando soou o primeiro gongo, os risos e os gracejos começaram a se fazer ouvir no pavilhão, seguindo seu curso costumeiro. De repente, arrombei a janela de barras serradas e pulei para dentro do quarto, armado com o espelho. As três moças deram um grito aterrador:
 
“ – Assassinaram nossos amantes!
 
“A princípio, nada de anormal parecia haver no quarto. Deixei o espelho pendurado na parede até que se fizesse dia claro. Descobriram-se, então, amontoados no solo, os cadáveres de três animais: uma doninha, cujo comprimento era de um pé e três polegadas; um rato de cinco libras, e um lagarto do tamanho de um braço de homem. As três moças ficaram curadas.
 
“A última etapa de minha peregrinação foi o Monte Lu, onde me demorei vários meses. Su Pi, eremita do Monte Lu, era homem de vasto saber. Conhecia a fundo o Yi-king e adivinhava o futuro com exatidão. Um dia, aconselhou-me:
 
“ – O espelho não ficará muito tempo em vossa posse. Porque os objetos divinos não são de molde a suportar indefinidamente a companhia dos homens. Ademais, o século não chegou ainda ao fim de suas desgraças. Apressai-vos a voltar para vosso país, valendo-vos da circunstância de o espelho estar ainda em vossas mãos para assegurar a viagem de regresso.
 
“Obedeci ao conselho do sábio. No dia seguinte, pus-me a caminho. Chegado à província de Hopei tive, certa noite, um sonho. O espelho cochichava-me:
 
“ – Estou resolvido a deixar, por longo tempo, o mundo dos humanos. Meu maior desejo é dizer adeus ao teu irmão, que me tratou sempre com deferência e amizade. Volta, pois, sem tardança, a Tchang-ngan!
 
“No sonho, prometi ao espelho que executaria seu desejo. Ao acordar, lembrando a promessa, senti grande inquietação, que me obrigou a, sem perda de tempo, pôr-me a caminho da capital. Eis-me aqui, pois, irmão. Cumpri a palavra dada ao espelho, mas receio que a hora de sua desaparição esteja próxima.”
 
Passaram-se muitas luas sem incidentes. Depois, chegou o décimo quinto dia da sétima lua do ano trinta de Tai-yei. Encontrava-me, na época, em Ho-tong, minha terra natal. Na tarde desse dia memorável, uma queixa dolorosa fez-se ouvir, vinda do estojo do espelho. Houve, depois, um assobio agudo, ao qual se seguiu um rugido lúgubre de tigre ou de dragão. O ruído durou bastante. Quando o silêncio voltou a reinar, abri receosamente o estojo: o espelho antigo, o precioso legado de meu mestre Heú Seng, desaparecera sem deixar vestígios.
 
(Tradução de Alda de Carvalho Ângelo)
 
NOTAS:
 
[1] Sobre o processo de animalização individual e coletiva de seres humanos, veja a metade superior da página 18, em “Cartas dos Mestres de Sabedoria”, Editora Teosófica, Brasília, 1996, 295 páginas. Trata-se do terceiro parágrafo da chamada “Carta do Maha-Chohan”. (CCA)
 
[2] Livro de astrologia arcaica. (NT)
 
[3] O autor do conto. (NT)
 
[4] Alcunha do Yang-tsé-kiang.  (NT)
 
[5] Li – Légua chinesa correspondente a cerca de 600 metros. (NT)
 
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Em setembro de 2016, depois de uma análise da situação do movimento esotérico internacional, um grupo de estudantes decidiu formar a Loja Independente de Teosofistas. Duas das prioridades da LIT são tirar lições práticas do passado e construir um futuro saudável. 
 
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