A Cada Momento Presente, o
Passado é o Alicerce do Futuro
 
 
Gilmar Gonzaga
 
 
 
 
 
O tema da memória merece um exame a partir de uma perspectiva teosófica, considerando-se as suas nuances e a relevância dos seus efeitos nos processos individuais de autoconhecimento e autoaperfeiçoamento – os quais, desde que exercitados autenticamente, desdobram-se em ações altruístas.
 
Trata-se de uma abordagem da Memória à luz da Teosofia. A memória é examinada neste contexto como um dos componentes da Lei cuja função pode ser caracterizada como definidora do ritmo da trajetória das Almas em relação ao grande fluxo ou processo de aprendizado chamado Evolução.
 
Aprendizado, neste contexto, envolve a assimilação do essencial das experiências vivenciadas pela Alma enquanto peregrina através dos ciclos; e a recordação de uma natureza espiritual preexistente, durante os períodos de desenvolvimento da consciência.
 
Encontramos na obra “Glossário Teosófico” a seguinte definição de “memória”:
 
Em geral, entende-se por memória a faculdade mental de recordar ou reter o conhecimento dos pensamentos, atos e acontecimentos passados; a faculdade de reproduzir impressões anteriores através de associação de ideias sugeridas principalmente por coisas objetivas ou por alguma ação sobre nossos órgãos sensoriais externos. Esta faculdade depende completamente do funcionamento mais ou menos são ou normal de nosso cérebro físico.
 
Contudo, memória é um nome genérico, pois, além da memória em geral, temos: 1º) a lembrança; 2º) a retenção e 3º) a reminiscência.
 
A lembrança e a retenção são atributos e auxiliares da memória em geral. A reminiscência é coisa inteiramente diferente; os ocultistas e teósofos definem-na dizendo que é a ‘memória da alma’ e, portanto, não é física nem passageira, nem depende das condições fisiológicas do cérebro.
 
A reminiscência dá ao homem a certeza de ter vivido antes e de ter de viver novamente.” [1]
 
O avanço na Senda do Conhecimento exige o exercício dos diversos níveis da memória. Nos casos em que o aprendizado requer a aplicação da mencionada memória em geral, além do uso das nossas faculdades mentais e fisiológicas (necessárias à retenção e à lembrança), é comum recorrermos ao apoio de recursos materiais, genericamente denominados
“registros” ou “anotações”.
 
Considerando a abrangência desses recursos para além das anotações pessoais, podemos admitir que todos os registros que versam sobre o autêntico Caminho do Conhecimento figuram como instrumentos acessórios úteis ao processo de aprendizado e serviço altruísta. Ao produzir ou reproduzir anotações e ao torná-las públicas, legamos, em alguma medida, aos indivíduos com quem coexistimos ou aos que vierem depois de nós – incluindo nós mesmos em uma perspectiva de reencarnações – memórias do nosso contato com aspectos da Verdade, até o nível onde pudemos penetrá-la.
 
Esses registros escritos não diminuem a importância das lembranças e retenções relacionadas às nossas faculdades mentais e fisiológicas. Ao contrário, coligam-se a elas.
 
A prática de memorizar passagens sintéticas (aforismos, sutras, etc.) dos grandes tratados que contêm conhecimento fundamental ao aprendizado é comum nas relações entre instrutores e discípulos. Para ilustrar esse ponto de vista destaco que essa prática auxiliou na elaboração da obra “A Voz do Silêncio”, uma vez que o seu conteúdo foi escrito por Helena P. Blavatsky a partir de trechos memorizados por ela do “Livro dos Preceitos de Ouro”. Nas palavras de HPB:
 
“As páginas que se seguem têm como origem o Livro dos Preceitos de Ouro, uma das obras que são colocadas nas mãos dos estudantes místicos do Oriente. O conhecimento destas páginas é obrigatório naquela Escola oriental cujos ensinamentos são aceitos por muitos teosofistas. Portanto, como conheço de memória muitos destes Preceitos, o trabalho de traduzi-los foi uma tarefa relativamente fácil para mim.” [2]
 
Em um sentido amplo, a memória revela-se como um elemento importante de desenvolvimento em várias instâncias, no âmbito individual e coletivo, incluindo nesse processo as anotações.
 
Hoje em dia grande parte das anotações que caracterizam o “Conhecimento” disponível para os estudantes encontra-se em arquivos virtuais que circulam pela rede mundial de computadores ou internet. Acerca dessa “realidade virtual”, anotei em 2018:
 
Atualmente, o fenômeno das redes sociais virtuais, revela situações que refletem (…) incongruências. Muitas pessoas, por meio de anotações compartilhadas, expõem conteúdos com variados graus de futilidade e reduzidos aspectos do que é verdadeiro. Outras vezes são expostos detalhes sobre as suas próprias personalidades que não coadunam com a realidade. Muitas vezes faces sorridentes escondem almas sofredoras e frases bonitas e positivas contrastam com vidas desarmônicas e desregradas. Por outro lado, o mesmo instrumento ou canal consagra-se como um excelente veículo de propagação de ideias relacionadas ao verdadeiro Conhecimento e é possível adaptá-las para receptividade pelas diversas camadas de consciência que utilizam esses meios cada vez mais.
 
Com base nessas reflexões, podemos afirmar que, tanto individual como coletivamente, somos e fazemos parte de um reservatório de memórias que favorecem ou dificultam a evolução.
 
A partir dessa perspectiva, podemos afirmar que o nosso trabalho, individual e coletivamente, envolve a purificação do campo da memória, em parte pela dissolução das ideias falsas, mas principalmente pela afirmação da memória primordial ou Verdadeira.
 
Sobre a abordagem da memória a partir da teosofia clássica, Carlos Cardoso Aveline escreveu:
 
O uso da memória é tão importante, em teosofia e no caminho espiritual, que a prática da presença divina pode ser descrita como ‘a lembrança constante do mestre’ ou a ‘lembrança constante dos preceitos mais elevados’.
 
Cabe observar, portanto, de que coisas nos lembramos continuamente, e perguntar-nos se são temas elevados, que dizem respeito à alma espiritual, ou assuntos menores e que não valem a pena serem lembrados de forma constante.
 
A minha experiência sugere que não é correto lutar diretamente contra lembranças de coisas inferiores ou nocivas. É acertado substituí-las (conforme recomendam os Aforismos de Ioga) por um ato de vontade. Cabe pensar repetidamente no seu oposto e em coisas superiores. Além disso, a visão estável e constante do mundo mais elevado coloca na sua perspectiva adequada a memória das coisas inferiores ou nocivas.
 
A mera ‘supressão’ da memória de coisas pessoais tampouco é desejável e um esforço neste sentido será quase sempre neurótico. O que acontece saudavelmente é a observação e a compreensão dos eventos pessoais do passado, feitas desde o ponto de vista do eu superior.
 
A alma espiritual conserva em todos os casos uma memória absoluta de cada evento da encarnação atual, e esta memória completa será ‘entregue’ ao final da encarnação ao eu superior e para um exame por parte da Lei: o fato é frequentemente chamado de ‘Julgamento’, em termos simbólicos. Define-se com base nesta ‘avaliação-relato’ o rumo do pós-morte e da próxima encarnação. Esta entrega ou relatório ocorre como um desabafo, uma prestação de contas, um informe, uma transmissão da chama da vida, para que a vida continue em outro trecho, em outro nível, sem perder nada do que passou.[3]
 
O estudo da memória nos seus aspectos mais sutis revela que o verdadeiro registro está na alma peregrina. O conteúdo assimilado aflora no campo das experiências, de encarnação em encarnação.
 
Explorando essas nuances, Joana Maria Pinho anotou:
 
A memória tem muitos níveis, aspectos e dimensões. Segundo a Teosofia, tudo se encontra registrado na luz astral. Entendo que esse registro corresponde a uma dimensão daquilo a que chamamos de ‘memória’.”
 
Até mesmo aquelas coisas que não recordamos no plano consciente exercem uma influência nas nossas vidas. O subconsciente é de certa forma um depósito de vivências e de memórias. E muitas delas são guardadas por nós a sete chaves como tentativa de evitar olhar para elas e de ‘revivê-las’. Mas nada é totalmente esquecido e nada é apagado.”
 
A lei do Carma é por vezes comparada a um livro no qual fica registrada toda e qualquer ação. De certa forma, esse é um livro de memórias cujo conteúdo é formado por aquilo que escrevemos no agora. No essencial nada fica esquecido, pois tudo é registrado.”
 
Em nossa peregrinação espiritual é a memória de nossas origens que nos faz avançar e percorrer o caminho de regresso a casa, à essência da vida. A ‘saudade’, uma das palavras mais usadas na poesia em língua portuguesa, tem uma dimensão sentimentalista infantil, mas também possui uma dimensão profunda que remete para a transcendência. A saudade implica lembrança de algo que vivemos e do qual ficamos privados. E a saudade, na sua dimensão saudável e elevada, é como uma mola impulsionadora que nos faz ir ao encontro do que deixamos para trás. Como o caminho espiritual é cíclico, o que foi deixado para trás é encontrado andando para a frente, e para o alto.[4]
 
O progresso avança em espiral.
 
Vale lembrar, neste ponto, de uma ideia registrada na obra “Luz no Caminho”:
 
Há três verdades que são absolutas e não podem ser perdidas, mas podem permanecer em silêncio por falta de quem as expresse.
 
A alma do homem é imortal, e o seu futuro é o futuro de algo cujo crescimento e esplendor não têm limites.
 
O princípio que dá vida habita em nós e fora de nós. Ele é imortal e eternamente benéfico; não é ouvido, nem visto, nem sentido pelo olfato, mas é percebido pelo homem que deseja a percepção.
 
Cada homem é o seu próprio absoluto legislador, produzindo para si glória ou trevas; é o decretador da sua vida, da sua recompensa, da sua punição.
 
Estas verdades, que são grandes como a própria vida, são tão simples como a mais simples das mentes humanas.
 
Alimenta com elas os famintos.[5]
 
Recordando um trecho da definição citada no início deste artigo, vemos que “a reminiscência é a memória da alma”, e dá aos homens “a certeza de ter vivido antes e de ter de viver novamente”.
 
Essa certeza sutil, que reúne no aqui e agora a experiência acumulada do passado e o potencial a ser desenvolvido no futuro, pode ser estimulada pelo conhecimento da lei do Carma e da Reencarnação. A Loja Independente de Teosofistas trabalha nesse sentido.
 
NOTAS:
 
[1] Reproduzido do livro “Glossário Teosófico”, de Helena P. Blavatsky, Ground Editora, 782 pp., p. 370. O trecho citado teve os parágrafos divididos para melhor apresentação das ideias.
 
[2] Excerto do Prefácio do livro “A Voz do Silêncio”, de Helena P. Blavatsky, edição online da Loja Independente de Teosofistas, com tradução de Carlos Cardoso Aveline, 41 pp., p. 2.
 
[3] Comentário escrito de C. C. Aveline durante estudo da Loja Independente de Teosofistas, em 07 de dezembro de 2019.
 
[4] Comentário escrito de Joana M. Pinho durante estudo da Loja Independente de Teosofistas, em 07 de dezembro de 2019.
 
[5] Reproduzido da obra “Luz no Caminho”, de M.C., editora The Aquarian Theosophist, com tradução, notas e prólogo de Carlos Cardoso Aveline, 85 pp., 2014, ver nota de rodapé na p. 29. O trecho citado teve os parágrafos divididos para melhor apresentação das ideias.
 
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O artigo “Examinando o Tema da Memória” foi publicado nos websites associados dia 21 de dezembro de 2019.
 
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