Transformando a Preservação da Saúde
Num Exercício de Ginástica da Vontade
 
 
Jean des Vignes Rouges
 
 
 
 
 
Toda a dificuldade está em ter a
perseverança suficiente para transformar
a aplicação destas regras em um hábito.”
 
 
 
Eu quero!” Você afirma, fechando os punhos. “Eu quero! Eu quero!” E você repete essas palavras como se elas reunissem dentro de você uma energia enorme.
 
Calma, meu amigo. Calma. Ouça minha lição primeiro. De onde vem essa energia toda que você quer sentir circulando dentro de você? Vem do seu corpo, em primeiro lugar. Ou seja, de transformações físicas e químicas acontecendo na intimidade das suas células. Se você não absorvesse comida e oxigênio, se não liberasse ácido carbônico, calor, etc., a sua vontade não existiria.
 
“Verdade óbvia”, diz você: “Passemos a fatos mais interessantes.”
 
– Ah! Eis aí um impaciente que gostaria de aprender num piscar de olhos um processo milagroso que lhe dê instantaneamente uma vontade de ferro.
 
Bem, meu amigo, não é possível. Mesmo que lhe pareça chato, devo insistir na necessidade de cuidar do seu corpo.
 
Ah, eu sei bem que há alguma coisa de humilhante na afirmação de que a nossa vontade depende do nosso organismo. Estamos todos convencidos de que podemos e devemos dar a nossos corpos ordens para que façam qualquer coisa. A única opção que este escravo – o corpo –  tem, é obedecer! Caso contrário, vamos chicoteá-lo! Nossa vontade é a rainha da nossa personalidade, e ela não pode ceder aos caprichos de uma enxaqueca, nem ao mau humor de uma  prisão de ventre teimosa.
 
Esse desprezo excessivo pelo seu corpo não é algo que você sinta todos os dias. É por isso que você talvez tenha um medo ridículo de sentir frio quando vai para o trabalho, e às vezes acontece que você receia trabalhar em excesso e ficar esgotado. Mas  quando se trata de cortar  metade das suas horas de sono sob o pretexto de que você precisa se divertir, então você exige impiedosamente o esforço necessário do seu “pobre animal”. Se o animal reclamar, você procura um médico para que ele coloque a situação nos eixos outra vez. 
 
Quem já não teve este tipo de conduta incoerente? É por isso que insisto que você registre em sua memória esta verdade: você é um conglomerado de materiais coloidais, e dentro deles ocorrem inúmeras reações das quais depende a sua vontade. Você verá, em outro lugar, que a força da sua vitalidade tem origem num princípio espiritual. Certo. Mas esse espírito só se manifesta enquanto tiver à sua disposição um instrumento: o corpo. E isto está sujeito a leis naturais que são  implacáveis.
 
A cada momento, a nossa vontade é influenciada pelo estado atual do nosso organismo. Pense nas modificações mentais impostas pela idade, pelo sexo, pela alimentação insuficiente ou excessiva, pelo cansaço, pela insônia, pelo frio, pelo calor, pela excitação dos nervos que resulta do vento e da chuva. Seu fogão a lenha, ou lareira, está funcionando mal? Você respira ar viciado. Há então uma concentração de ácido carbônico no sangue que causa todo tipo de excitação e inibição, alterando diretamente a sua vontade. Lembre-se do estado mental que surge em você devido a uma gripe banal, uma dor de dente, uma indigestão, ou um calo inflamado no pé. Porém, mesmo quando se sente bem, há em você centenas de estímulos disfarçados e sutis que definem o aspecto original da sua vontade.
 
Por exemplo, você não ignora a influência das glândulas endócrinas na sua vida psíquica. Se a sua tiroide parar de produzir hormônios suficientes, você cairá em um estado de apatia, de indiferença lamentável; os seus pais, seus amigos, vão culpar você por não ter entusiasmo; você será avaliado negativamente, desqualificado e desprezado. Tudo isso porque faltam no sangue alguns miligramas de uma substância produzida pela tiroide, cuja ausência destruiu sua força de vontade. Talvez uns comprimidos resolvam o problema.
 
Por outro lado, se a mesma glândula funcionar em excesso você será transformado em um entusiasta extremado e alguém que comete imprudências. Coma muita salada natural, cenoura, beba sucos naturais, retire a carne da sua dieta, e a sua força de vontade ficará mais prudente.
 
– E seus órgãos interiores, os seus intestinos, o seu baço, seus pulmões, seu coração! Ah! Eles também não hesitam em influenciar a sua vontade. Estes são locais onde ocorrem o tempo todo reações elementares que repercutem insidiosamente na sua vida psíquica. Uma pequena alteração no funcionamento do fígado, e você sente as dores e o frio com mais intensidade, o que naturalmente inclina a sua vontade a fugir do sofrimento, ou a ter medo do inverno.
 
Você sabe: o seu sistema nervoso simpático – que controla as funções da vida vegetativa – só funciona harmoniosamente na medida em que for adequadamente desacelerado pelo nervo vago. Se for quebrado o equilíbrio entre esses dois, por exemplo, uma necessidade mórbida de excitação levará você a buscar excessivamente oportunidades de se emocionar, de se indignar; todas essas emoções irão exasperar o seu sistema nervoso simpático de tal forma que o seu nervo vago não será mais capaz de reduzir seu ritmo. Você ficará altamente emocional e será incapaz de aceitar o menor tédio. Naturalmente, ficará furioso ao descobrir que, apesar de seus esforços, perdeu o controle sobre si mesmo.
 
Eu poderia continuar esta enumeração. Poderia mostrar-lhe que a sua consciência sofre uma invasão de impressões, de sensações surgindo perpetuamente de todas as partes do seu corpo: da sua pele, dos seus músculos, das suas glândulas sexuais, etc. É nesta maré de impressões que a sua energia voluntária deve nascer.
 
Não vou falar sobre o trabalho misterioso que ocorre nas células do seu cérebro quando você realiza um ato voluntário. Até hoje, na verdade, ninguém conseguiu dar uma descrição exata. Os cientistas mais qualificados limitam-se, neste assunto, a formular hipóteses mais ou menos engenhosas. Mas, quer se trate de correntes psíquicas, de impulsos nervosos, de uma força psicológica, ou de sequências de íons, de ondas, etc., uma coisa é certa: a energia desencadeada vem do trabalho humilde das células que se dedicam a transformar pão, batata, e outros alimentos, em força.
 
De acordo com quais leis é distribuída essa energia? Também aqui saberemos pouco, se permanecermos no nível fisiológico. Detectamos claramente uma espécie de corrente de impulsos nervosos que se propaga a velocidades variáveis ​​de 2 metros a 40 metros por segundo, seguindo caminhos compostos por cadeias de neurônios. Mas isto é interessante, especialmente, para psicólogos de laboratório.
 
No entanto, o sr. Pierre Janet expôs uma teoria da tensão psicológica que é possível aplicar na prática. Passemos a examiná-la.
 
Para Janet [1], os atos de vontade que um homem é capaz de realizar podem ser classificados numa hierarquia, colocando os mais difíceis de executar no alto e os mais fáceis na base. As ações “difíceis” são aquelas que exigem não só um maior gasto de influxo, mas também maior tensão. A tensão sugere, portanto, um gasto mais rápido, mais urgente e mais intenso de impulsos nervosos.
 
Assim, a lista dos nossos atos voluntários pode ser feita do seguinte modo:
 
No alto, as ações que exigem forte tensão psicológica; são aquelas com as quais nos adaptamos de modo prático à realidade. Podem ser invenções, planejamentos, decisões, atos complexos que exigem o uso de todos os nossos conhecimentos, das nossas capacidades, nossa memória, nossa experiência, mas estas ações diversas visam expressar-se com rapidez em algo concreto que interessa vivamente nossa personalidade inteira.
 
Observe que esses atos, praticados diante de testemunhas, são mais difíceis do que os praticados na solidão. Por exemplo, precisamos usar mais fortemente a nossa vontade quando participamos de uma refeição formal do que quando desfrutamos tranquilamente do nosso café da manhã. Quantas pessoas se confundem, gaguejam, ficam desajeitadas no momento em que precisam agir em público! O simples fato de que estão sujeitos à visão crítica dos outros os obriga a uma maior tensão.
 
Um pouco mais abaixo, colocaremos os atos que exigem de nós simplesmente estar atentos à realidade, sem necessidade de uma decisão imediata. Por exemplo: esperar o momento certo para agir.
 
Situados um pouco mais abaixo, isto é, exigindo ainda menos tensão, estão os atos realizados como num jogo, em abstrato. São ideias que concretizaremos mais tarde, ou talvez nunca. Inúmeros são os atos que realizamos desta forma: falamos sem dizer nada, decidimos agir quando as circunstâncias são favoráveis, prometemos, juramos, raciocinamos, filosofamos, mas isso tudo é apenas o começo das ações; sabemos bem que só as nossas cordas vocais estão atuando; isso nos diverte e nos dá a ilusão de querer.
 
Finalmente, em último lugar, temos os vagos devaneios durante os quais realizamos mil proezas. Criamos projetos quiméricos, sabendo muito bem que jamais realizaremos nenhum deles. Para este trabalho vão, basta uma tensão muito baixa.
 
A esta enumeração, segue-se uma conclusão inevitável. Se você quiser realizar atos de vontade que sejam verdadeiramente “significativos” e provoquem resultados, é necessário que a sua tensão psicológica seja forte.
 
“Mas”, argumenta você, “posso obter essa tensão ‘dobrando minha vontade’, segundo a expressão clássica. Quando digo ‘eu quero’, eu me contraio, tensiono os músculos, franzo as sobrancelhas. Isso não é suficiente?”
 
Esta postura voluntária do seu corpo é útil, mas não é suficiente, se os seus acumuladores de energia estiverem vazios. E eles só estarão cheios se o seu corpo estiver em boas condições. Ah, sem dúvida, acontece que um corpo aparentemente débil é capaz de um esforço surpreendente. É o caso dos numerosos cientistas, escritores, filósofos e poetas que sacrificam a boa digestão dos alimentos, e as sensações de felicidade de um corpo equilibrado, para concentrar todas as suas energias no cérebro e produzir obras-primas. O pensamento deles é criativo, e torna-se ainda mais criativo à medida que o seu organismo é atacado pelo sofrimento; isso é possível desde que a dor não exceda uma certa intensidade, nem tampouco determinada duração.
 
Devemos tirar o chapéu para os nossos heróis do pensamento e, diante das suas figuras apagadas, admirar como a mente pode queimar a matéria num magnífico espetáculo de fogo-de-artifício. Mas não inclua a si mesmo de imediato entre essas personalidades excepcionais. Não jogue toda a sua energia vital em uma única cartada. As suas circunstâncias, os seus gostos, as suas possibilidades, exigem que você administre sua reserva energética de forma diferente da maneira escolhida por Pascal, por exemplo. Observe-o sem inveja, e com humildade; isso é sabedoria.
 
A tensão psicológica que devemos esforçar-nos por adquirir, seguindo as prescrições necessárias para a manutenção da saúde, nada tem em comum com aquela contração quase desesperada do homem que subordina tudo a um desejo violento, a uma paixão, e que, infelizmente, é muitas vezes forçado a admitir que “não consegue sustentar o ritmo”.
 
Ter uma tensão adequada de energia voluntária é, pelo contrário, sentir-se calmo, equilibrado, livre de preocupações e convulsões, capaz de realizar os seus projetos com um sentimento de liberdade, de amor, de alegria. No entanto, este estado só é alcançado se nos aplicarmos pacientemente, com perseverança, a viver de acordo com as normas racionais da ciência da preservação da saúde.
 
Ah! Eu concordo, não é uma ideia muito agradável repetir:
 
“Para ter uma vontade sã, devo ter um corpo são”.
 
Porque, de fato, a concretização deste programa exige um esforço contínuo e árduo. Seguir as leis da manutenção da saúde, não cometer erros prejudiciais ao futuro bem-estar, parece monótono e enfadonho para alguns. Eles preferem se divertir e “ir fundo”. Estes são os retardatários, os que morrem no meio do caminho por onde passam os vencedores da vontade.
 
A você que quer viver eu digo: aceite com forte coragem a necessidade de abrigar a sua alma num corpo vigoroso. Assim você possuirá reservas de impulsos nervosos que poderão, no momento certo, florescer em magníficos atos de vontade.
 
Cuide portanto, com paciência, do seu “animal”. Não exija dele o que ele não pode fazer. Por exemplo, se você não está se sentindo bem, tenha a coragem de não iniciar uma ação voluntária para a qual você não possui energia de reserva suficiente. Espere até que sua pressão arterial suba outra vez. Porque não é preciso dizer que a sua tensão sofre oscilações constantes, dependendo do estado em que está o seu corpo.
 
Mas não transforme essa regra sábia em uma desculpa para nunca querer. Há pessoas preguiçosas que esperam a vida toda pelo momento em que a sua tensão será alta o suficiente para permitir-lhes querer; e esse momento não chega nunca.
 
Entre o estado da pessoa exausta que “quer” algo inutilmente e adota uma atitude convulsiva,  mas mesmo assim não consegue, e o estado do preguiçoso que poderia, mas não quer, existe espaço para um estado normal de vontade no qual a “exigência” de energia é adequada às possibilidades do corpo.
 
Não insisto nas regras de saúde corporal que você deve seguir. Você as encontrará em livros especializados, mas elas também podem ser resumidas em poucas palavras. Alimentação saudável, sem deficiência ou excesso. Um monitoramento cuidadoso dos órgãos digestivos, cujo funcionamento influencia grandemente a força de vontade. Exercício físico suficiente, ao ar livre. Repouso. Toda a dificuldade está em ter a perseverança suficiente para transformar a aplicação destas regras em um hábito. Isto significa que a observação das práticas de manutenção da saúde oferece inúmeras oportunidades para treinar a vontade. Aproveite-as.
 
Para terminar, aqui está um pequeno procedimento que preservará em você o prazer de cumprir as regras da boa saúde.
 
Escreva no seu “Caderno da Vontade” [2] o nome do erro que você comete com mais frequência na área da preservação da saúde, e faça uma breve lista com as consequências prejudiciais que resultam dele. Por exemplo, o hábito de dormir tarde. Escreva então: “Sono insuficiente” e mais abaixo: “Redução da força de vontade, estado de torpor, enfraquecimento da imaginação e da memória, enxaquecas, tonturas, movimentos físicos desajeitados, diminuição da rapidez dos movimentos, redução do desempenho profissional, fadiga, propensão a desmaiar, irritabilidade, estado de espírito antissocial, mau humor, emotividade exagerada, predisposição para acreditar que sofre de todas as doenças, emagrecimento”.
 
Naturalmente, não estou inventando nada ao copiar esta lista, que você encontrará nas obras científicas mais autorizadas. Se você acredita que tem uma constituição diferente dos outros seres humanos e pode escapar das consequências da falta de sono, tenha cuidado com essa vaidade; caso contrário ela irá criar um problema para você.
 
Quando você sentir a tentação de abusar das suas forças, passando desnecessariamente uma noite sem dormir com a desculpa do direito à diversão, pense no Caderno da Vontade que você tem à mão. Releia mentalmente a página que denuncia as desvantagens da insônia, e poderá avaliar melhor se é adequado ir deitar-se, ou talvez “preparar uma boa ressaca” para a manhã seguinte.
 
NOTAS:
 
[1] O psicólogo, psicoterapeuta, médico e filósofo francês Pierre Janet (1859-1947) foi aluno de J. M. Charcot – assim como Sigmund Freud -, e cumpriu um papel importante na origem da psicanálise. É considerado um dos pais da Psicologia, e deixou numerosas obras significativas. (CCA)
 
[2] Clique para ler “O Caderno da Vontade”.
 
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Jean des Vignes Rouges é o pseudônimo literário do militar e escritor francês Jean Taboureau (1879-1970).  
 
 
O texto “A Energia da Vontade” é uma tradução, feita por CCA, do artigo L’Énergie de la Volonté”. Fonte bibliográfica: “Dictionnaire de la Volonté”, Méthode D’Éducation de la Volonté, de Jean des Vignes Rouges, Éditions J. Oliven, Paris, 320 pp., 1945, pp. 118-124. O artigo em português foi publicado nos websites da Loja Independente de Teosofistas no dia 28 de novembro de 2023.  
 
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Helena Blavatsky (foto) escreveu estas palavras: “Antes de desejar, faça por merecer”. 
 
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