Cada Pessoa Tem Uma Ligação Única
Com a Verdade Eterna e a Lei Universal
 
 
Ivan A. Il’in
 
 
 
Ivan A. Il’in (1883-1954) e a capa da sua obra em inglês
 
 
 
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Nota Editorial de 2019:
 
A obra do pensador hegeliano Ivan Il’in
é influente na Rússia de hoje, e sua obra
começa a ser melhor conhecida no Ocidente.
É fácil ver que os seus escritos possuem
pontos essenciais em comum com a teosofia.
 
O texto a seguir é traduzido do livro “On
the Essence of Legal Consciousness”, de
Ivan A. Il’in; publicado por Wildy, Simmonds &
Hill Publishing, 2014, UK, 391 pp., ver pp. 115-123.
 
A introdução à obra e sua tradução do russo para
 o inglês foram feitas por William E. Butler, Philip
T. Grier e Vladimir A. Tomsinov. O texto está
disponível em inglês nos websites associados.
 
As notas de rodapé acrescentadas pelos tradutores
ao inglês não foram incluídas na presente tradução.
Para facilitar a leitura reflexiva, os parágrafos mais
longos foram divididos em parágrafos menores.
 
 (Carlos Cardoso Aveline)
 
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A época histórica que está sendo experimentada hoje pelas nações deve ser vista como uma época de grande desmascaramento e revisão desde um ponto de vista espiritual.
 
A calamidade das guerras mundiais e revoluções que mudaram o mundo e estremeceram toda a vida das nações até o alicerce é, essencialmente, um fenômeno natural, e portanto só pode ter bases e causas naturais.
 
Mas por toda parte em que a natureza se exalta, e onde ela, uma vez inflamada, toma posse da vida e dos destinos das pessoas, em todo lugar em que as pessoas se veem indefesas diante da sua ação cega e esmagadora, há sempre, oculta, a imperfeição, ou imaturidade, ou degeneração, da cultura espiritual da humanidade: porque a ação desta cultura consiste precisamente em subordinar cada um dos elementos da natureza à sua lei; ao seu desenvolvimento e à sua meta.
 
Uma calamidade natural sempre revela a derrota, a limitação e a falha do espírito, porque a transformação criativa da natureza continua sendo a tarefa mais elevada do espírito. E por maior que seja essa calamidade, e por mais vastos e arrasadores que sejam os sofrimentos causados por ela, o espírito humano deve aceitar o seu fracasso e na própria intensidade do seu sofrimento ver um chamado ao renascimento e à regeneração. Mas isso significa compreender o desastre que cai sobre nós como um grande desmascaramento espiritual.
 
A natureza que agora envolve a humanidade na incalculável infelicidade de grandes guerras e convulsões é a natureza de uma alma humana desorganizada e amargurada.
 
Por maior que seja a importância do fator material na História, e seja qual for a força com que as necessidades do corpo trazem para si o interesse e a atenção da alma humana, o espírito humano nunca é reduzido, e nunca será reduzido, à condição de um médium passivo, sem atuação, subordinado a influências materiais e às exigências do corpo.
 
Além disso, uma obediência cega, inconsciente, a estas influências e exigências reduz a dignidade do espírito, porque sua dignidade consiste em ser uma causa criativa, criando a sua vida de acordo com metas mais elevadas, e não em ser um médium passivo dos processos naturais da matéria.
 
Toda influência que entra na alma humana deixa de ser um peso morto de causalidade e se transforma em um estímulo vivo, uma atração, uma razão, um sujeito da transformação espiritual e da orientação racional. É um dom que pertence à própria essência do espírito, a capacidade de apreender, interpretar, transformar e dirigir de novo cada influência que ingressa vindo de fora. E na medida em que o espírito humano não possui este dom em quantidade suficiente, na mesma medida os elementos naturais do mundo o oprimem e fraturam a sua vida. Na mesma proporção a sua imaturidade é desmascarada e revelada. Na mesma medida novas tarefas e a possibilidade de novas realizações se colocam diante do espírito.
 
Mas para tomar posse desse dom e usá-lo com todo o seu poder de transformar o mundo, o espírito humano deve tomar posse da sua própria natureza: a Natureza da alma irracional e semirracional.
 
É impossível organizar o mundo material sem ter organizado o mundo da alma, porque a alma é o instrumento criativo essencial para organizar o mundo.
 
Uma alma submissa ao caos não tem o poder de produzir um cosmos no mundo externo: porque um cosmos é criado de acordo com fins mais elevados, enquanto um caos psíquico vai para lá e para cá, confuso, entre uma multiplicidade de “fins” triviais e contraditórios, obedecendo ao instinto cego. A alma instável ainda tem uma real potencialidade em relação ao espírito: ela percebe e refrata, mas não transforma nem dá nova direção às influências de fora que a invadem. As suas “metas” permanecem marcas passivas de pressões causais, e a sua confusão está sempre carregada de novas calamidades.
 
Internamente instável em suas tarefas, seus esforços e habilidades, a alma humana em vão busca salvar-se através do domínio do mundo externo. Ao controlar tecnicamente a matéria, ela cria para si mesma apenas uma nova situação de desamparo; ao vencer a natureza externa, ela prepara uma insurreição do caos interno; as suas vitórias forjam o molde para uma nova e inesperada derrota.
 
No momento presente, diante dos nossos olhos, o mundo moderno repete o caminho do sofrimento antigo; a nova experiência leva a velhas conclusões. Estas conclusões ensinam, outra vez, que o autoconhecimento e a autotransformação do espírito humano precisam repousar sobre a base da vida inteira, de modo que a vida não seja vítima do caos e da degradação. Elas ensinam que a desintegração interna da alma humana torna impossível a ordem social, e que a desintegração da organização social leva a vida de um povo à ignomínia e ao desespero. E ainda mais, estas conclusões ensinam que a ordenação formal da alma do indivíduo e da economia social não torna a vida de um ser humano segura em relação à degeneração da sua substância e a tendências criminosas.
 
Através de todos os sofrimentos do mundo, surge e brilha a antiga verdade, e ela convida as pessoas a uma nova compreensão e um novo reconhecimento: a vida de um ser humano só é justificada quando a sua alma vive desde um único centro, um centro objetivo, movida por um amor autêntico pela Divindade como supremo bem.
 
Este amor e a vontade que surge dele têm como base todo o desenvolvimento da vida espiritual de um ser humano, e fora dele a alma anda à deriva, fica cega, e tropeça. Fora dele o conhecimento se torna uma paródia de conhecimento, a arte degenera assumindo uma forma vazia e banal, a religião se converte numa autointoxicação desonesta, a virtude é substituída pela hipocrisia, a lei e o Estado se tornam instrumentos do mal. Fora dele um ser humano não pode encontrar uma meta adequada e única na vida que converta todas as suas “atividades” e “ocupações” em uma simples atividade do Espírito e que garanta a vitória do espírito humano. Só uma busca vital e autêntica pela Perfeição garante esta vitória, porque é em si mesma a fonte do poder mais elevado, um poder invencível sejam quais forem as “circunstâncias”, e que introduz ordem no mundo interno e externo. Isso é explicado pela própria natureza do espírito: é aquele poder criativo da alma que busca conhecimento, virtude e beleza autênticos, e que, intuindo a Divindade como o verdadeiro ponto focal de qualquer perfeição que possa haver, conhece o mundo para compreender a lei da Divindade como a lei do mundo. Mas a alma, sempre preservando dentro de si a potencialidade do espírito, pode converter essa possibilidade em algo real apenas quando dentro da alma surge, como um fogo holístico feito de contentamento, um amor pelo que é Divino e um desejo de tornar-se Espírito, de encontrar um caminho para isso, e de revelar este caminho aos outros.
 
A História mostra que não é fácil para o ser humano encontrar este caminho, que é difícil avançar por ele, e fácil perdê-lo. O caos dos desejos triviais e dos objetivos sem importância dispersa imperceptivelmente os poderes da alma, e as paixões humanas extinguem o seu fogo.
 
A alma perde o seu acesso ao conteúdo espiritual e portanto não consegue manter a forma do espírito: porque ela só pode estar na forma do espírito quando ela vive autenticamente através do verdadeiro conteúdo do espírito. Tendo perdido a forma do espírito, ela se torna uma vítima do seu próprio caos e é levada por sua própria dinâmica até o colapso e as calamidades. E deste modo a sua tarefa é perceber nestas mesmas calamidades e dores a sua queda para longe de Deus, é ouvir o Seu chamado [1], reconhecer a Sua voz [2], e submeter o seu próprio caminho falso a um desmascaramento e um reexame.
 
Atualmente, a filosofia tem a grande e responsável tarefa de iniciar esta reconsideração e este desmascaramento. O fracasso espiritual impressionante da humanidade, com uma sucessão de guerras até aqui inauditas e revoluções sem precedentes, comprova com força e clareza inquestionáveis o fato de que todos os aspectos da existência espiritual viveram e se desenvolveram através de caminhos falsos; que todos eles estão em um estado de profunda e severa crise. A humanidade perdeu o rumo em sua vida espiritual, e o caos surpreendeu-a com uma calamidade nunca vista. Isso comprova que o próprio modo da vida espiritual era falso [3], que a vida espiritual precisa ser reexaminada até as suas raízes, e renovada e regenerada começando das raízes para cima.
 
E se a tarefa de organizar uma comunidade pacífica e justa de pessoas na Terra é uma tarefa para a lei e para a consciência legal, então a crise contemporânea revela sobretudo a profunda doença da consciência legal contemporânea.
 
Há sempre nas almas das pessoas alguns aspectos que não chamam atenção suficiente, ficam obscuros durante várias gerações e são reconhecidos apenas em parte. Isso ocorre não só porque estes aspectos possuem em sua própria essência um caráter instintivo e são, de certo modo, expulsos do campo de consciência, e não só porque eles são em si mesmos espiritualmente insignificantes ou secundários em termos práticos e são de certo modo deixados de lado entre outras nuances igualmente não-essenciais da vida – mas também porque o cultivo deles requer um esforço determinado de vontade e atenção, ao mesmo tempo que a importância espiritual deles, em termos da sua natureza básica, faz contraste com a autopreocupação e a miopia da consciência cotidiana.
 
Sempre é possível encontrar algumas pessoas capazes de se surpreenderem sinceramente com o fato de que há nelas uma certa visão de mundo, que elas possuem seu senso estético particular, que vivem em uma certa relação constante com a voz da sua consciência, e possuem uma consciência legal que é característica das suas almas. [4]
 
E ao mesmo tempo cada pessoa, independentemente de idade, educação, intelecto e talento, vive conforme estes aspectos ou funções da alma, mesmo quando não sabe disso. Neste caso suas decisões e ações surgem diretamente sob a orientação de atrações e impulsos instintivos, e expressam a estrutura da sua psique, do seu caráter pessoal, seu nível individualizado de vida, ainda que o indivíduo talvez não saiba coisa alguma sobre isso e nem sequer suponha que as pessoas têm inevitavelmente uma visão de mundo e uma consciência legal, que elas vivem inevitavelmente de acordo com um gosto estético e uma consciência.
 
Uma visão de mundo limitada, estreita, obtusa, ainda assim é uma visão de mundo; o gosto grosseiro, pervertido e mau faz a sua própria escolha estética; uma consciência suprimida e mortificada, cuja voz não se escuta, ainda luta e chama desde o interior, e uma consciência legal deformada, amarrada e fraca dirige as ações das pessoas e cria as relações delas ao longo da vida inteira.
 
É impossível para um ser humano não possuir consciência legal; todos os que compreendem que há outras pessoas no mundo além de si mesmos a possuem. Um ser humano tem consciência legal independentemente de saber ou não disso, e de valorizar esta posse ou desprezá-la. Toda a vida de um ser humano e o seu destino inteiro são formados com a participação da consciência legal e sob a orientação dela; além disso, viver, para um ser humano, significa viver com base em uma consciência legal, dentro da função dela e segundo os seus termos: porque ela permanece sempre como uma das formas grandes e necessárias da vida. A consciência legal também vive na alma, mesmo quando ainda não existe uma lei positiva, quando ainda não há nem “lei” nem “costume”, quando nenhuma “autoridade” falou ainda sobre comportamento “correto” e adequado. 
 
Uma convicção ingênua, semiconsciente, imediata de que nem todos os atos externos das pessoas são igualmente admissíveis e “corretos”, de que há ações completamente intoleráveis e há decisões e desdobramentos “justos” – esta convicção, ainda inconsciente da diferença entre “lei” e “moralidade”, está na base de qualquer “lei” e “costume” e precede geneticamente qualquer atividade criadora de lei. E mesmo nos casos em que o conteúdo do costume e da lei é definido pelo autointeresse dos poderosos, quando a lei é “injusta” ou “má”, na sua base ainda está uma convicção imediata da necessidade e da possibilidade de distinguir o comportamento “correto” e “admissível” do comportamento “incorreto” e “inadmissível”, e de regular a vida das pessoas com base neste critério geral obrigatório.
 
Neste ponto fica claramente revelada a tragicomédia presente no ato de viver sob a lei: uma consciência legal deformada, pervertida, permanece sendo uma consciência legal, mas perverte o seu conteúdo; ela trabalha com a ideia da lei, mas tira desta ideia apenas um ‘esquema’, usa esta ideia da sua própria maneira, abusa dela e a preenche com conteúdo que não tem valor e é pervertido. Surge então a lei injusta, que por mais que seja chamada de “lei” e apresentada como lei, compromete a própria ideia de lei na mente das pessoas e destrói as bases da confiança na lei.
 
Esta tragicomédia não é característica apenas da atividade que cria leis, mas é a tragicomédia de toda a vida espiritual da humanidade. Cada pessoa tem dentro da sua experiência interna individual exclusiva o único instrumento de conexão com as alturas do espírito – com o que é verdadeiro, bom e belo, com a revelação e com a lei – e a única fonte de conhecimento a respeito deles. Cada um sabe, sobre estes objetos, apenas aquilo que vivenciou com independência e autenticidade e verificou criativamente. [5] 
 
Deste modo as pessoas esquecem o tempo todo das condições fundamentais da atividade espiritual: não procuram autenticidade na experiência e objetividade na pesquisa, mas se baseiam em inclinações pessoais e se satisfazem com opiniões subjetivas. Como resultado disso surge um espetáculo cômico e sem valor; as pessoas tomam decisões sobre o que é mais importante e supremo, sem saber o que estão decidindo; cada um faz afirmações peremptórias e se apega a elas, sem que elas tenham base. A verdade suprapessoal, automanifestada, é substituída pela certeza pessoal; surge uma multiplicidade interminável de discordâncias, a mente se dispersa, vacila, e chega a um “subjetivismo” estéril e a um “relativismo” sem alicerce.
 
A crença na possibilidade de um conhecimento autêntico, na unidade do que é bom, no valor objetivo da beleza, na possibilidade de uma revelação autêntica, na lei justa e espiritualmente verdadeira, desaparece, e com isso morre inevitavelmente a vontade de descobrir o verdadeiro caminho para o conhecimento e para a compreensão destes conteúdos supremos. O interesse pessoal passa a ser o único guia orientador, e a vida degenera imperceptivelmente.
 
Esta objetividade do conteúdo do objeto em sua relação com a lei pode ser descrita como sendo que nas relações externas de pessoa a pessoa há uma determinada retidão unitária e objetiva que é possível perceber apenas através da experiência interna, graças a um exame e uma revelação autênticos, objetivos, da lei natural. A experiência da lei natural é inerente a cada pessoa, mas para a maioria permanece sendo um “sentimento do que é certo”; um sentimento vago, incerto e desconhecido, como se fosse um “instinto para o que é correto”, ou na melhor das hipóteses “uma intuição do que é certo”.
 
Tornar-se consciente do conteúdo desta lei natural e revelá-lo significa iniciar uma consciência legal madura, transformando-a em um objeto da vontade e em uma emoção justificada, isto é, convertendo esta retidão unitária e objetiva em uma meta necessária e desejada na vida. Isso significa desenvolver e realizar em si mesmo uma consciência legal natural. 
 
Especialmente, uma consciência legal natural como objeto de conhecimento da “mais autêntica” lei unitária deve estar em si mesma na base de qualquer julgamento da “lei” e de qualquer decisão legal ou judicial, e por essa razão deve também estar na base daquelas “leis” que são estabelecidas em várias comunidades e Estados através de representantes autorizados sob o nome de “lei positiva”.  Quanto mais desenvolvida, madura, e profunda for a consciência legal natural, mais perfeita serão, neste caso, tanto a “lei positiva” quanto a vida externa das pessoas guiadas por ela; e, inversamente, uma consciência legal natural vaga, inconsistente, sem objetividade e fraca irá criar uma “lei positiva” que é “não-objetiva”, isto é, sem sentido, falsa, injusta, e que não corresponde ao seu protótipo.
 
Assim a “lei”, unitária e verdadeira segundo a sua ideia essencial, se bifurca e entra em uma contradição interna peculiar consigo mesma: a consciência legal natural não afirma o que é dito por um conhecimento da lei positiva, e como resultado disso a alma adquire duas consciências legais diferentes, porque ao lado da consciência legal natural surge uma consciência legal positiva, cujo conteúdo não corresponde ao conteúdo dela.
 
Esta bifurcação da lei, esta contradição da consciência legal, comprova, naturalmente, o fracasso espiritual que cai sobre o ser humano. Ele não consegue – devido à falta de vontade ou por causa de uma habilidade insuficiente – tornar-se consciente do conteúdo da lei natural e colocá-la no alicerce inquestionável de qualquer julgamento envolvendo a lei “positiva”. Mas como a habilidade sempre depende de um coração que é capaz de amar e da vontade que produz e cultiva a habilidade, ocorre que todo o grande fracasso espiritual na questão da atividade criadora da lei resulta de um endurecimento universal e historicamente estável: do endurecimento dos corações, e da falta de vontade de produzir uma lei justa.  
 
A partir disso já fica claro que a consciência legal normal não leva a uma vida bifurcada, mas a uma vida unitária e holística. E quando esta consciência vê diante de si uma bifurcação historicamente dada da lei, ela se dedica inteiramente à luta por uma lei unitária, justa, e à luta pela restauração da sua própria unidade interior, objetiva e espiritual. Ao mesmo tempo, esta consciência é uma relação espiritualmente verdadeira e holística da alma com a Lei. Ela não fica reduzida a “consciência” e “cognição”, mas vive sempre como uma busca da perfeição, da justiça e do que é correto, alimentada pelo coração e pela voz da consciência.
 
A consciência legal normal conhece o seu objetivo. Ela é um desejo consciente da lei; é um reconhecimento da lei em sua importância e obrigatoriedade, e um reconhecimento dela porque a vontade reconhece a sua meta. Portanto, a consciência legal normal é acima de tudo um desejo da lei como meta, e por essa razão é também um desejo da lei. Disso surgem a necessidade de conhecer a lei e a necessidade de realizá-la na vida, isto é, de lutar pela lei. É só desta forma holística que a consciência legal aparece como ‘consciência legal normal’ e se torna um poder nobre e inexorável, que se alimenta com a vida do espírito, e por sua vez determina e cultiva a vida do espírito na Terra.
 
A consciência legal normal pode ser descrita como um modo específico de vida pelo qual a alma vive, experimentando objetiva e verdadeiramente a lei na sua ideia fundamental e nas suas variantes singulares (instituições). Esse nível de vida psíquica é naturalmente algo ideal, embora não no sentido de que esse “ideal” seja irrealizável. Ao contrário, este modo de vida já existe em cada pessoa em embrião, e depende de cada um de nós tornar-nos conscientes da presença deste embrião em nós. Neste autotreinamento, é percebida uma grande dependência entre a “consciência” e o “fortalecimento” vital: a investigação da consciência legal normal tem êxito somente na presença de um desejo criador pela lei como meta, mas é precisamente um conhecimento objetivo desta meta que fortalece a vontade vital de chegar a ela.
 
O pesquisador que coloca diante de si esta tarefa entra inevitavelmente em uma luta contra toda uma multiplicidade de preconceitos, entre os quais talvez o mais persistente seja uma abordagem relativista da lei.
 
Aparentemente, as próprias condições para a criação e a realização da lei favorecem esse preconceito. Dentro da lei, segundo dizem as aparências, tudo é relativo. A consciência humana se acostuma com surpreendente facilidade e firmeza à ideia de que a lei é “condicionada” ao tempo e ao lugar, ao interesse e ao poder, à vontade persistente e ao acaso cego.
 
O que é lei “aqui” e “agora” pode, “amanhã” e “aqui”, ou “agora” mas “noutro lugar”, não ser lei. O que é proibido hoje pode ser permitido amanhã, e talvez possa ser imposto como obrigatório dentro de um mês. Interesses organizados se tornam um poder e declaram como “justo” o que amanhã será afastado como uma confluência “casual” de circunstâncias. Dentro dos arquivos são preservadas pilhas de “normas obsoletas” e códigos inteiros, e uma mente ágil, colocada a serviço de um interesse momentâneo, é capaz de interpretar e adaptar a lei “dominante” do modo como quiser. O conteúdo da lei é sempre “indefinido” e “condicional”, e o seu significado é sempre “provisório” e “relativo”.
 
A consciência legal contemporânea cresce e vive com base nesta convicção; está profundamente influenciada pelo relativismo e não conhece a si própria a ponto de saber que isso pode e deve ser diferente. 
 
A convicção de que a lei é algo “relativo” – tanto em termos do seu conteúdo como do seu caráter obrigatório – surge imperceptivelmente, inconscientemente, e por essa razão está enraizada nas almas de modo particularmente forte e profundo: esta convicção converge com os interesses míopes e egoístas; é alimentada por eles, e, por sua vez, serve a tais interesses. Disso surge um círculo vicioso de importância vital: a escuridão gera a maldade, e a maldade apoia a escuridão. Círculos de pessoas “cultas” e não-cultas negam-se de modo idêntico a acreditar no valor objetivo da lei e não respeitam as suas prescrições; veem na lei uma obrigação desagradável, ou, no melhor dos casos, um meio conveniente para atacar e defender-se. A consciência legal é reduzida a um conjunto de fragmentos impensados de informação, desde a esfera da lei positiva e até a capacidade de “fazer uso” de tais fragmentos; mas atrás desse “conhecimento” e desse “uso” estão ocultos os fracassos e os defeitos mais profundos, a degeneração interna e a impotência espiritual.
 
Uma consciência legal cega, sem princípios e impotente tem dirigido a vida da humanidade. Estas doenças da consciência legal desataram o elemento natural da alma e prepararam a sua derrota espiritual.
 
A vida do espírito exige de fato um reexame e uma renovação profundos.
 
NOTAS:
 
[1] Deus: a lei universal, impessoal. (CCA)
 
[2] A voz do Silêncio, a voz da Lei, a voz da alma eterna. (CCA)
 
[3] Este ponto é especialmente significativo nos ensinamentos originais da Teosofia. Veja por exemplo a Carta 88 em “Cartas dos Mahatmas”. A Carta está disponível nos websites associados sob o título de “Mestres Ensinam  Que Não Há Deus”. (CCA)
 
[4] A voz da consciência é a voz do que os teosofistas chamam de Antahkarana, a ponte abstrata entre o eu inferior e a alma espiritual. A consciência legal é um sentido de certo e errado e inclui um compromisso com a ação correta. (CCA)
 
[5] Uma descrição precisa e brilhante de Antahkarana, a ponte entre eu inferior e alma espiritual. Um enfoque 100 por cento idêntico ao de Helena Blavatsky e dos Mestres de Sabedoria. (CCA)
 
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O artigo “Tomando Posse da Nossa Própria Natureza” foi publicado nos websites associados dia 23 de outubro de 2019. Dois fragmentos dele apareceram antecipadamente na edição de janeiro de 2016 de “O Teosofista”, pp. 8-9, sob o título “Reflexões de um Filósofo Russo”.
 
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Leia também “O Respeito Espiritual por Si Mesmo”, de Ivan A. Il’in, e “Kohlberg e os Estágios da Consciência Ética”, de CCA.   
 
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