A Sabedoria Eterna Flui Por
Diferentes Campos Culturais
 
 
Carlos Cardoso Aveline
 
 
 
Victor Cousin (esquerda), Gottfried Leibniz e Maine de Biran
 
 
 
No início era ao Verbo, diz a Bíblia. No início era o Som, o mantra. E cada idioma possui uma vibração particular, que se relaciona ocultamente com o carma acumulado e o carma futuro dos povos que o falam.
 
Uma língua constitui um conjunto determinado de sons, tons e ritmos, de modos de pensar, de ver, sentir e agir. Um idioma evoca experiências cármicas milenares, e é também o herdeiro de idiomas mais antigos. Aceder ao conhecimento de uma língua é adotar um mundo cultural único e um magnetismo próprio.
 
De outro lado, existe um espaço linguístico amplo, sem fronteiras.
 
Ao fortalecer a amizade entre todos os povos, a tradição esotérica autêntica expande o patrimônio comum dos mais diferentes idiomas. Um antigo sonho da humanidade pretende desfazer a Torre de Babel da separação entre linguagens, para que um idioma universal seja compartilhado por todos.
 
O tema é examinado pelo filósofo Maine de Biran, ao mencionar um fragmento autobiográfico de Gottfried Leibniz.
 
Quando Leibniz tinha 16 anos de idade, conta Biran, ele “foi levado por suas meditações à ideia sublime de um alfabeto dos pensamentos humanos, que deveria incluir os elementos ou os caracteres mais simples de todas as nossas ideias e servir para expressar as diversas combinações; de maneira que indo do simples para o composto, ou voltando do composto para o simples, fosse fácil e fosse possível saber demonstrar todas as variedades da verdade. O autor nos descreve a alegria infantil (segundo ele) com que desenvolveu esta bela especulação, da qual ele admite que estava longe de perceber todas as dificuldades práticas”.[1]
 
A verdade é que o idioma universal existe desde tempos imemoriais – mas seu uso é restrito.
 
O jovem Leibniz estava tendo uma recordação subconsciente, uma experiência intuitiva de busca pelo Senzar, a linguagem mística secreta dos Iniciados de todos os povos. Mais tarde, Leibniz aprofundou em várias obras a sua busca da linguagem universal. 
 
O Senzar – o idioma dos idiomas – pode ser escrito e lido em diferentes alfabetos. Está presente no antigo Egito, nos velhos Andes e na Ásia, além de outras regiões do mundo. Abordado em várias obras de Helena Blavatsky, inclusive na abertura de “A Voz do Silêncio”, o idioma dos mistérios permanecerá um sonho na etapa atual da nossa humanidade. Ele simboliza um nível de compreensão que, respeitando profundamente cada povo e cada idioma, mostra a quem tem olhos para ver a essência comum a todos eles.
 
Seguramente, só uma mente elevada é capaz de compreender a linguagem universal, o idioma sem fronteiras, a lei das correspondências e analogias. É nesta direção que aponta o caráter intercultural do projeto teosófico da pequena Loja Independente.
 
O ensinamento dos Mestres e de Helena P. Blavatsky capacita o estudante a buscar a consciência eterna, para a qual não há paredes divisórias no espaço. Compreendendo a compatibilidade e a interação entre diferentes linguagens, a raiva é naturalmente substituída pela cooperação, o egoísmo pela generosidade, e o pessimismo pela busca do ótimo.   
 
A Sabedoria e os Idiomas
 
O movimento teosófico surgiu na década de 1870 em países de língua inglesa, e até hoje predominam na sua literatura os autores que escreveram neste idioma. Embora H.P.B. tenha sido russa, quase toda sua obra foi escrita em inglês.
 
As principais publicações do movimento sempre circularam, e ainda circulam, em língua inglesa. Grande parte do acervo dos websites da Loja Independente está neste mesmo idioma. Desde março de 2012 os seus editores publicam o periódico mensal “The Aquarian”, criado nos Estados Unidos no ano 2000 por Jerome Wheeler. É tarefa dos teosofistas pensar em profundidade sobre os grandes temas humanos e fortalecer a literatura teosófica em todos os idiomas.
 
Tendo nascido em uma família nobre da Rússia, Helena Blavatsky foi educada convivendo diretamente com a língua francesa. Ela sempre escreveu fluentemente em francês. O inglês veio aos poucos, depois de morar nos EUA, a partir de 1874. O principal precursor direto de HPB, Eliphas Levi, era francês.
 
A França, ao contrário dos Estados Unidos, cumpria o papel de uma grande potência na época. Constituía quase uma capital cultural do mundo. A Inglaterra era como uma capital econômica e militar, embora Londres fosse forte também culturalmente e constituísse um bastião da liberdade de pensamento. Londres colocava um limite ao poder do Vaticano. A Inglaterra protestante fazia o contraponto ao absolutismo católico.
 
HPB começa sua trajetória pública em 1875 nos Estados Unidos, àquela época ex-colônia inglesa. Passa a trabalhar a partir de 1879 na Índia, ainda colônia, e culmina a sua trajetória pública na Inglaterra, a superpotência mundial. Nos três países falava-se a língua inglesa.
 
Levando em conta estes fatos, podemos perguntar:
 
“Por que o esforço teosófico de HPB se concentrou exatamente nos três países em que ela viveu durante os 16 anos da sua vida pública? Por que trabalhou nestes lugares e não em outros?”
 
O carma explica a questão.
 
A fundação do movimento em Nova Iorque, realizada sob a liderança de uma mulher russa e um cidadão norte-americano, foi silenciosamente profética. Na mesma cidade, setenta anos depois, foi criada a Organização das Nações Unidas, cujos ideais são teosóficos. [2]
 
A ex-colônia norte-americana era um exemplo a ser seguido pela Índia. As Américas faziam parte do berço da futura sexta sub-raça da quinta raça-raiz, a civilização multirracial e intuitiva que deverá nascer no futuro.
 
Depois do plantio das sementes iniciais em terras americanas, HPB passa à Índia. A dominação colonial da Ásia criava as condições para a reciprocidade cármica, isto é, para uma forte influência espiritual da sabedoria do Oriente sobre a Inglaterra e, através dela, sobre o Ocidente. 
 
A missão de HPB – como Iniciada de terceiro nível da Loja dos Mestres – é completada enquanto ela vivia em Londres, “o centro do mundo”, um ponto de confluência entre Oriente e Ocidente.
 
O estado natural dos Mestres é o silêncio: só quando são dadas certas condições cármicas eles se manifestam de modo ostensivo. Foi o que ocorreu entre 1875 e 1891. Naturalmente, isso aconteceu de acordo com a Lei dos Ciclos. Completavam-se os 5000 anos iniciais de Kali Yuga, e preparava-se a passagem para a era de Aquário, cujo ponto culminante foi o ano de 1900.
 
A língua inglesa era prioridade porque o mundo anglo-saxão dava o impulso da passagem para a era de Aquário. Era o momento certo para que surgisse com mais força Buddhi-Manas, o princípio da consciência da Fraternidade Universal.
 
A língua francesa não esteve no centro dos acontecimentos porque a França não havia criado um carma tão forte com a Índia ou com os Himalaias, e apesar da sua grande força cultural não era o país que organizava a globalidade da civilização humana.
 
Os Idiomas Latinos 
 
Helena Blavatsky teve dois colaboradores diretos na Espanha, José Xifré e Francisco Montoliu. Graças à ação deles o movimento irradiou-se por todo o mundo hispânico. Xifré e Montoliu escreveram pouco, mas deixaram o movimento organizado em seu idioma. [3]
 
HPB teve um colaborador direto em Portugal, o Visconde de Figanière. O visconde construiu uma importante obra escrita. Um ou dois dos seus artigos são citados em “A Doutrina Secreta”. Vários textos seus foram publicados nas revistas editadas pessoalmente por HPB.[4] No entanto não deixou um esforço teosófico coletivo. O movimento em língua portuguesa só surgiu bem depois, sob o domínio da pseudoteosofia de Annie Besant.
 
No plano econômico e militar, o Brasil foi dominado desde cedo pela Inglaterra, que tinha influência decisiva sobre Portugal. Culturalmente, porém, Paris era a capital do mundo. Do ponto de vista da formação espiritual e cultural do Brasil, o longo império de D. Pedro II foi um ponto alto.[5]
 
Na história do pensamento filosófico brasileiro, este período foi marcado pela influência do ecletismo de Victor Cousin. Na literatura, pelo romantismo.
 
A proposta da filosofia eclética – como esclarece o francês Victor Cousin – não é um sistema, mas um método e um ponto de vista. O ecletismo estuda diferentes sistemas filosóficos, procurando reunir os pontos comuns e essenciais em todos eles. Embora falha em vários pontos, a filosofia eclética do século 19 tem um parentesco com a teosofia eclética de Alexandria, a escola de pensamento neoplatônica fundada por Amônio Saccas, mestre de Plotino. A teosofia eclética do mundo antigo foi uma das bases cármicas, isto é, experienciais, para a fundação do movimento teosófico moderno em 1875, conforme Blavatsky esclarece.[6]
 
Antes da teosofia de Blavatsky, Victor Cousin, Maine de Biran e outros pensadores instalaram na cultura francesa uma influência neoplatônica. Immanuel Kant e Karl Krause fizeram outro tanto a partir da Alemanha. Krause – pouco conhecido hoje – foi influente na origem da filosofia brasileira. Krause era um pan-enteísta: seu conceito de “Deus” correspondia a Brahma e Parabrahman.
 
Kant é amplamente citado nas Cartas dos Mahatmas e em H.P. Blavatsky. Um dos Mestres de Sabedoria, aquele que mais transmitiu ensinamentos através de cartas e de HPB, passou alguns anos na Europa, fisicamente, durante a década de 1850. O Raja Iogue esteve um certo tempo visitando a universidade alemã de Heidelberg. Nas Cartas, ele conta que estudou o sistema filosófico kantiano. Immanuel Kant é um dos grandes pensadores humanistas da transição para a era de Aquário, começada no final do século 18.
 
Os Católicos e o Ecletismo  
 
A filosofia eclética no Brasil foi duramente combatida pelos jesuítas – a tropa de elite dos papas – e pelos demais pensadores católicos. Os vaticanistas circularam inclusive panfletos e sátiras diretas contra a pessoa de Cousin, e contra Kant.
 
A conspiração pelo monopólio cultural do catolicismo, que crê e não pensa, teve relativo êxito. Hoje Cousin é um nome desconhecido – e não só no Brasil. O fundador do ecletismo moderno está esquecido mundialmente. Seu nome quase não consta de dicionários de filosofia. Alguns dos seus livros, em francês, ainda podem ser encontrados nesta ou naquela livraria de livros antigos.
 
A Loja Independente possui vários deles. São edições das décadas de 1840 a 1870. O mérito por documentar a importância do ecletismo de Victor Cousin cabe ao autor Antônio Paim, um dos maiores historiadores da filosofia brasileira.
 
A Força Ibérica  
 
É correto resgatar os pontos em comum entre a teosofia de todos os tempos e a filosofia eclética francesa. O acervo dos websites associados possui textos e livros em francês [7], e temos consciência da contribuição do conjunto da cultura latina para o crescimento espiritual da humanidade.
 
Na primeira metade do século 21, a Loja trata de construir a partir do mundo ibero-americano [8] um trabalho teosófico com base na proposta original formulada por H.P. Blavatsky e pelos Mestres. O esforço se desdobra em vários idiomas. Alcança dezenas de milhares de leitores ao redor do mundo e influencia lojas teosóficas em vários continentes.
 
Visto como processo cármico e cultural, todo país possui sete princípios ou níveis de consciência. Cabe estimular os aspectos superiores da percepção coletiva. A obra de Victor Cousin – e em certa medida a dos seus discípulos em países latinos – constitui uma fonte de energia noética, espiritual e intuitiva. Em seu momento histórico, este nível de filosofia foi marcante, e o fato não ocorreu por acaso.
 
Na primeira metade do século 19, a herança do Iluminismo havia criado um clima favorável ao livre-pensamento e à filosofia em geral. O obscurantismo dos Jesuítas e do Vaticano estava enfraquecido. Nessa situação inclusiva e ampla nasceu o Ecletismo, que ajudou a preparar o surgimento da Teosofia moderna entre 1875 e 1891.
 
Ao terminar o século 19, veio a forte predominância de três correntes mecânicas e obscurantistas. Em primeiro lugar, o positivismo de Augusto Comte. Em segundo lugar, o materialismo de Karl Marx e Friedrich Engels. Finalmente, o tradicional catolicismo autoritário dos papas do Vaticano.
 
Embora a proposta filosófica de Victor Cousin não tenha rompido com o cristianismo, ela foi combatida pelos católicos intensamente, porque o ecletismo coloca a Razão acima da mera Crença. Ainda hoje ele é potencialmente influente.
 
A boa vontade é o bem mais precioso dos cidadãos, por causa do seu poder criador.
 
O teosofista bem informado sabe que é preciso conhecer o passado para compreender o presente e construir com lucidez o futuro. E tudo é simétrico. Aquele que pretende tirar lições úteis do que passou deve estar em contato com os aspectos saudáveis daquilo que acontecerá. A felicidade surge da afinidade natural com o lado luminoso do futuro.
 
Enquanto aponta para o século 22 e além com base na teosofia original, a Loja Independente deve trabalhar em diversos idiomas pela valorização da herança espiritualista eclética de todos os pensadores éticos e humanitários.
 
NOTAS:
 
[1] “Exposition de la Doctrine Philosophique de Leibnitz”, ensaio de Maine de Biran publicado em “Œuvres Philosophiques de Maine de Biran”, publiés par V. Cousin, Tome IV, Paris, Librairie de Ladrange, 1841, ver pp. 305-306.
 
 
[3] A Loja Independente está ativa em língua espanhola. Clique para ver o acervo dos websites associados neste idioma: Teosofía en Español. Visite no Facebook a página Teosofia en Español.
 
[4] Vários escritos de Figanière estão disponíveis nos websites associados. E veja o estudo de Pinharanda Gomes sobre a vida e a obra do Visconde: “Gnose e Liberdade”.
 
[5] O tema é examinado em “A Filosofia de Dom Pedro II”.
 
[6] Sobre a teosofia eclética de Alexandria, cabe ler as páginas iniciais da obra “A Chave da Teosofia”, de Helena Blavatsky, que está disponível nos websites associados. O capítulo primeiro da obra também está publicado em tradução própria nossa.
 
[7] Clique para vê-los: “Philosophie et Théosophie en Français”.
 
[8] Sobre o mundo ibérico, está publicado o artigo “A Civilização Integradora”.
 
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Sobre Victor Cousin, leia “Limpando as Lentes do Telescópio” e “A Necessidade do Infinito”.
 
Examine nos websites associados a seção temática “Filosofia Ocidental, Clássica e Moderna”.
 
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O artigo “Os Idiomas da Teosofia” foi publicado dia 26 de junho de 2019.
 
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