Pomba Mundo
 
Editor da Revista “Biosofia”
Avalia o Passado e o Futuro do Seu País
 
 
José Manuel Anacleto
 
 
O Fado e a Teosofia no Destino de Portugal
 
Uma guitarra portuguesa, usada no fado
 
 
 
José Manuel Anacleto é escritor, editor da “Biosofia” e Presidente da Direção do Centro Lusitano de Unificação Cultural, CLUC. Colabora com diversas outras organizações filosóficas e cívicas, e é autor de vários livros, entre os quais “Alexandria e o Conhecimento Sagrado”.
 
Carlos Cardoso Aveline submeteu por escrito, em 2013, sete perguntas a José Manuel sobre a relação entre o fado e a teosofia, e sobre o despertar ético de Portugal no século 21. O que se segue é o resultado do diálogo.
 
CCA:
 
Peço que examine o  culto ao fado e ao sofrimento na cultura portuguesa, visto como um problema. Será interessante refletir sobre como ocorre “a estética do sofrimento” e o “embelezamento da dor”. O desânimo pode ser algo que se cultua e cultiva, ao invés de sublimá-lo e de eliminar suas causas.
 
JMA:  
 
José Manuel Anacleto
                         José Manuel Anacleto

 

“Quem morre não sofre mais / mas partir é dor demais / é bem pior que morrer”.
 
Esta é a parte nuclear da letra de um dos mais belos e significativos fados de Lisboa (há dois estilos de fado, o de Lisboa e o de Coimbra).
 
Nela está bem expresso muito do carácter do fado e de uma parte da “alma portuguesa”. Grande parte da história portuguesa, desde há quase 600 anos, foi feita de partir “para as sete partidas do mundo”, e partir, e portanto viver, é muito pior que morrer, antevisto como, finalmente, um termo para um sofrimento incessante.
 
Não por acaso, os dois maiores poetas portugueses, Camões e Pessoa, cantaram belamente a dor e poucos o fizeram mais radicalmente. Alguns dos seus poemas mais impressivos têm esse traço bem marcante.
 
De Luís de Camões, ocorrem-nos, por exemplo, três famosos sonetos:
 
“Aquela triste e leda madrugada, / cheia toda de mágoa e de piedade, /enquanto houver no mundo saudade, /quero que seja sempre celebrada.
 
Ela só, quando amena e marchetada / saía, dando ao mundo claridade, / viu apartar-se d`ua outra vontade, / que nunca poderá ver-se apartada.
 
Ela só viu as lágrimas em fio, / que duns e doutros olhos derivadas, / s`acrescentaram em grande e largo rio;
 
Ela viu as palavras magoadas, que puderam tornar o fogo frio, e dar descanso as almas condenadas”.
 
“O dia em que nasci moura e pereça, / Não o queira jamais o tempo dar; / Não torne mais ao Mundo, e, se tornar, / Eclipse nesse passo o Sol padeça.
 
A luz lhe falte, O Sol se [lhe] escureça, / Mostre o Mundo sinais de se acabar, / Nasçam-lhe monstros, sangue chova o ar, / A mãe ao próprio filho não conheça.
 
As pessoas pasmadas, de ignorantes, / As lágrimas no rosto, a cor perdida, / Cuidem que o mundo já se destruiu.
 
Ó gente temerosa, não te espantes, / Que este dia deitou ao Mundo a vida / Mais desgraçada que jamais se viu!”
 
“Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, / Muda-se o ser, muda-se a confiança: / Todo o mundo é composto de mudança, / Tomando sempre novas qualidades.
 
Continuamente vemos novidades, / Diferentes em tudo da esperança: / Do mal ficam as mágoas na lembrança, / E do bem (se algum houve) as saudades.
 
O tempo cobre o chão de verde manto, / Que já coberto foi de neve fria, / E em mim converte em choro o doce canto.
 
E afora este mudar-se cada dia, / Outra mudança faz de mor espanto, / Que não se muda já como soía”.
 
CCA: 
 
Impressionante.
 
JMA:
 
E como não lembrar as magníficas redondilhas de Babel e Sião, do mesmo Camões, recorrendo ao simbolismo judaico mas numa conceptualização marcadamente neoplatônica, com evidentes alusões à anamnese ou reminiscência e à preexistência da Alma? Reproduzimos o seu início:
 
“Sôbolos rios que vão / por Babilónia, me achei, / Onde sentado chorei / as lembranças de Sião / e quanto nela passei. / Ali, o rio corrente / de meus olhos foi manado, / e tudo bem comparado, / Babilónia ao mal presente, / Sião ao tempo passado.
 
Camões
           Luís de Camões (1524  – 1580)
 
 
Ali, lembranças contentes / n’alma se representaram, / e minhas cousas ausentes / se fizeram tão presentes / como se nunca passaram. / Ali, depois de acordado, / co rosto banhado em água, / deste sonho imaginado, / vi que todo o bem passado / não é gosto, mas é mágoa.
 
E vi que todos os danos / se causavam das mudanças / e as mudanças dos anos;/ onde vi quantos enganos/ faz o tempo às esperanças. / Ali vi o maior bem / quão pouco espaço que dura,/ o mal quão depressa vem, / e quão triste estado tem / quem se fia da ventura.
 
Vi aquilo que mais val, / que então se entende milhor / quanto mais perdido for; / vi o bem suceder o mal, / e o mal, muito pior. / E vi com muito trabalho / comprar arrependimento; / vi nenhum contentamento, / e vejo-me a mim, que espalho / tristes palavras ao vento” (…)
 
CCA:
 
O culto ou apego à tristeza não começou ontem.
 
JMA:
 
É algo de tão enraizado na alma coletiva dos Portugueses, que se nos afigura que, em vez de impossível ou artificialmente removido, deve antes ser transformado e sublimado, como fermento de criatividade.
 
Olhando a história, parece que este foi o lastro, marcado a ferro e fogo, dos Descobrimentos e das viagens marítimas dos Portugueses, sobretudo à medida que foram crescendo as separações, as canseiras, as mil e uma tribulações e a impossibilidade crescente de manter um império demasiado grande para uma nação tão pequena. A vontade nacional exauriu-se.
 
Significativamente, na origem do fado, como música, apesar de alguns ecos mouriscos, estiveram os marinheiros. Há nele murmúrios do lundum dos escravos negros do Brasil. O Fado de Portugal é parente próximo da morna de Cabo Verde.
 
CCA: 
 
Como se pode ir além de um circuito fechado do pensamento negativo e do baixo astral, estabelecidos falsamente como “identidade da cultura portuguesa”?  
 
JMA:  
 
Antes das viagens e expansões marítimas, ao que parece, os Portugueses eram mais felizes. Rezam as crónicas que, no tempo do Rei D. Pedro I (a meio do século XIV), havia paz, pão e felicidade e o monarca dançava e festejava na rua com o povo de Lisboa, apesar da trágica história dos seus amores por Inês. Em 1383-1385, na que já foi considerada a primeira revolução popular do mundo, também o cronista Fernão Lopes dá conta do alvoroço alegre e vigoroso (por vezes excessivo) do povo de Lisboa.
 
Por isso, e apesar das dificuldades presentes, talvez o fim do ciclo do império e das colónias traga um romper com o lado negativo do Fado, o que foi patente nas últimas décadas (mesmo nas asas de um certo novo-riquismo)…  
 
CCA:
 
O culto e o cultivo quase religiosos da dor são cômodos para uma sociedade arcaica e autoritária?
 
JMA:
 
De algum modo, são. Verificamo-lo em todas as formas de dominação. Não nego que a dor pode ter uma função sublimante e criadora – e muitos dos maiores gênios da história demonstram-no com extraordinária clareza. Mas, em termos coletivos, é frequentemente inculcada como meio de submissão e de expiação de erros alheios. Constatamos isso mesmo não só em domínios político-econômicos mas também religiosos, visto que muitas vezes, infelizmente, as religiões, que deveriam ser meios de libertação, exerceram uma ação escravizante face a poderes e interesses instalados.
 
No caso de Portugal, constatamos desde há séculos que, nos momentos de maior dificuldade, o país se fecha sobre si mesmo, num fatalismo – raiz de fado – e num quase masoquismo dolorífico. Muito da imagética associada à política foi de redenção, pela dor.
 
No presente, o discurso assenta muito na ideia de que os cidadãos estão a passar mal porque foram levianos e gastaram demais – passando-se ao lado do fato de que se estimulou de todas as formas o consumismo e da evidência de que a culpa do desequilíbrio financeiro provém em larguíssima medida das ações de uma pequena elite política e econômica. Salazar, no regime anterior, usava frases como:
 
“Mas não tenhamos ilusões; as reduções de serviços e despesas importam restrições na vida privada, sofrimentos, portanto. Teremos de sofrer em vencimentos diminuídos, em aumentos de impostos, em carestia de vida (…). É a ascensão dolorosa de um calvário! No cimo podem morrer os homens, mas redimem-se as pátrias”.
 
Ou ainda:
 
“O Portugal dos vossos filhos, redimido no sacrifício e na dor, nas privações, no trabalho, na angústia destes calamitosos tempos, mas salvo, honrado, belo, forte, engrandecido, como o divisamos já na aurora de amanhã!”
 
Por controverso que seja, tenho para mim que os atuais governantes de Portugal têm menos brilho ou talento de que Salazar e que, se atuam num quadro de democracia formal, é apenas pela contingência do regime em que nasceram – já que as tendências e os tiques de autoritarismo são ainda mais primários, sob o verniz externo de liberalismo.
 
CCA: 
 
Portugal possui uma vocação universalista e futurista, que se reflete no lema:
 
“Navegar é preciso, viver não é preciso”. 
 
Como resgatar, durante o século 21, os aspectos mais elevados desta tendência histórica para a ação pioneira? 
 
JMA:
 
Depois do nascimento e consolidação (início do século XII ao fim do século XIV), Portugal iniciou a sua fase de expansão, que o levou às “sete partidas do mundo”, desvelando as costas e o extremo meridional de África, redescobrindo os continentes Americano e Australiano, chegando por mar à Índia, adentrando-se pela China e pelo Japão. Neste último processo, houve luzes e sombras – talvez mais sombras do que luzes.
 
Contribuiu-se para que a Terra fosse uma só, para que o planeta pudesse ser visualizado como um todo, para que culturas se encontrassem, para que raças se misturassem (neste último aspecto, Portugal foi quase um caso ímpar). Ao mesmo tempo, houve muita coisa de que não só não nos podemos orgulhar, como, sobretudo, foi bastante negativa: é verdade que, ao contrário de outros povos, não dizimámos culturas mas ignorámos o seu valor em termos espirituais; tentámos impor uma religião e um modelo civilizacional à força; fomentámos a escravidão e a violência racial.
 
A seguir veio a decadência, em etapas sucessivas, com pequenos momentos de sobressalto, e nas últimas quatro décadas, num regime político aberto, democrático, e com a integração europeia, manifestou-se uma maior participação cívica, um surto de modernismo e um intenso consumismo (até há 3/4 anos), sobrepondo-se às tendências nostálgicas, melancólicas e pessimistas que agora ressurgem.
 
CCA: 
 
Quais são as principais lições práticas a tirar da experiência histórica acumulada?
 
JMA:
 
Penso que temos que aproveitar o melhor das diversas fases, recusar os erros e fazer uma síntese do melhor a um nível superior mais lúcido.
 
A universalidade necessita agora de ser cultural e espiritual, não de confronto mas de inclusividade.
 
Teosofista que sou, naturalmente que vejo na síntese das filosofias, ciências e religiões das diversas Idades, latitudes e religiões que nos propiciaram Helena Blavatsky, seus mestres e discípulos legítimos, um mapa fundamental para trilhar esses novos caminhos a percorrer.
 
É uma nova partida; contudo, agora, sobretudo interior. A lírica da saudade, mas sem fatalismos castradores ou inibidores, a energia construtiva dos primeiros séculos, mas sem ânimo de guerrear e conquistar, uma certa alegria e otimismo da fase europeia de progresso (1985-2010), mas sem consumismo alienante e sem voltar as costas ao resto do mundo, podem e devem ser mescladas e aproveitadas.
 
Há valores que, em circunstâncias adversas, havendo permanecido algo subterrâneos, têm agora condições para emergir: os de uma sabedoria espiritual aberta e inegoística, os de uma ecologia profunda, o de uma compaixão sem fronteiras e preconceitos.
 
Também aqui, entretanto, a Teosofia pode e deve ser o substrato de vontade e de coragem, como igualmente de discernimento e lucidez – para que não voltemos a buscar ouros menos valiosos, na voragem das sempre efémeras ilusões.
  
CCA:
 
Agradeço.
 
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