Os Objetos Materiais Devem
Servir a Vida, e Não o Contrário
 
 
C. Jinarajadasa
 
 
 
Uma fábrica de carros de brinquedo, em torno de 1930
 
 
 
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Nota Editorial de 2018:
 
Este pioneiro artigo dos anos 1930 aponta para
a questão central  da desumanização da vida. O
desafio é antigo, e no século 21 parece atingir o auge.
 
O texto transcreve palestra de C. Jinarajadasa
 feita durante uma visita de mais de três meses ao Brasil.
C.J. mostra a necessidade de re-humanizar a civilização e
 de colocar a vida mais claramente acima das coisas. O
perigo não está na máquina, nem no progresso tecnológico,
em si, mas no desrespeito pelos seres humanos. O  texto é
reproduzido de “O Teosofista”, maio-agosto de 1934, pp.
158-159. Título original: “A Máquina ou o Homem?”.
 
(Carlos Cardoso Aveline)
 
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Quão confortáveis são as nossas vidas, hoje em dia, comparadas com aquelas que viveram nossos avós? Temos em casa água corrente, gás e eletricidade; fora das habitações temos bondes, ônibus e trens. Podemos hoje ouvir Londres, Paris e Nova York pelo rádio; e, se tivermos pressa, podemos transportar-nos à Europa em cinco dias. Por todos os lados temos dispositivos e mais dispositivos para nos proporcionarem conforto.
 
Mas, porventura pensastes já quanto custou a obtenção destas coisas que nos proporcionam conforto? Terá já passado por vossa mente que, nesse febril desenvolvimento da civilização para produzir mais objetos para nosso conforto e conseguir maior rapidez nos transportes, o espírito do homem vai sendo vagarosamente aniquilado?
 
Observai por vós próprios: olhai ao vosso redor na sala em que vos achais. Quantos, dos objetos que vos cercam, foram produzidos por máquinas? Sabeis que as pernas da cadeira em que vos sentais foram feitas por um carpinteiro, os braços por outro e o espaldar por um terceiro? Se penetrardes numa fábrica moderna onde trabalham centenas de homens, notareis que o capitalista verifica que pode ganhar mais dinheiro especializando seus trabalhadores em grupos, cada um cuidando da confecção de uma parte de determinado produto. Vereis um homem produzindo, por meio de uma máquina, somente uma determinada peça – como, por exemplo, somente pernas de cadeiras – durante oito horas por dia, e isto por semanas e semanas. O carpinteiro moderno, numa oficina, nunca terá a satisfação de construir uma cadeira completa. E assim é com todas as coisas.
 
Estamos cercados de objetos feitos por máquinas. A mão do homem representa bem pouco na sua confecção. O mais poderoso ditador do mundo, hoje, é a máquina. O espírito criador do homem acha-se acorrentado.
 
 
O gramofone é semelhante a música enlatada
 
 
Os Estados Unidos da América do Norte especializaram-se na produção de laticínios e no acondicionamento, em latas hermeticamente fechadas, de quase todas as nossas iguarias: eles enlatam todos os legumes, o peixe e a carne. Ninguém compreendeu inteiramente como as vitaminas são quase totalmente destruídas nesse processo, exceto no caso do tomate. Desse processo universal de enlatar, tiraram eles a frase “Música enlatada”, para descrever música produzida nos teatros e cinemas por meio de uma máquina que veio substituir o artista vivo da orquestra.
 
A máquina é o ditador. E não avaliamos quanto temos perdido das delicadas belezas da vida por meio desse processo de mecanização. Não sentimos, a não ser que sejamos muito sensitivos, a diferença entre a cadeira entalhada por uma máquina e aquela outra que foi entalhada por um carpinteiro, pelas suas próprias mãos. Não conhecemos a diferença entre um aposento onde os seus vários objetos foram criados pela mão do homem, e um outro onde foram feitos simplesmente por meio de máquinas sob o controle do homem.
 
Entretanto, quanto mais culto um homem se torna, tanto mais anseia pelo espírito do homem.
 
Por que será que homens e mulheres das Américas vão à Europa – à Itália, à França, à Alemanha – e visitam monumentos, igrejas e catedrais? Porque compram velhos objetos entalhados, esculturas e pinturas? É porque a mão do homem, nesses monumentos, transmite ainda a mensagem do espírito do homem.
 
Se tivésseis de colocar a torre de Giotto, em Florença, ao lado do edifício Martinelli, em S. Paulo, feito de cimento armado, compreenderíeis imediatamente como a torre de Giotto fala da grandeza do espírito do homem, e o vosso arranha-céu da grandeza do poder da máquina.
 
Como podemos salvar o espírito do homem do regime ditatorial da máquina? Há somente um caminho: é submetermo-nos todos a uma cultura artística para nos tornarmos artísticos. Devemos cantar, e não apenas ouvir discos de gramofone. Devemos representar no palco, e não ficar satisfeitos apenas com os cinemas. Devemos aprender a criar poemas – não importa que sejam pequenos – e não limitarmo-nos a ler somente os jornais. Devemos exercitar nossas próprias mãos no entalhe da madeira, na modelagem do barro, transformando-os em coisas belas com os nossos dedos.
 
Devemos cercar-nos pouco a pouco, em nosso lar, de objetos dos quais se irradie a delicada influência de um criador humano.
 
Nossos artistas poderão auxiliar-nos a contrabalançar o regime ditatorial da máquina. Precisamos da máquina, não para sermos seus escravos, mas para que seja nossa servidora. Mas, é preciso que os artistas nos ajudem, saindo dos seus ateliers e ensinando o povo. Eles devem, não só criar obras artísticas, mas ensinar aos outros a produzi-las. Devem ensinar as massas a cantar, a dançar e a representar no palco. Precisam organizar concertos e dramas, ensinar as crianças a criar pequenos poemas, pequenas estátuas, e também a pintar quadros, admirar um pôr de sol ou ouvir música grandiosa.
 
Dessa maneira, pouco a pouco, vós, no mundo ocidental, volvereis a possuir o grandioso mundo do espírito que haveis perdido quase por completo. Nós temos ainda esse mundo em nossa velha Índia: penetrai ali no casebre de qualquer pobre e examinai sua cozinha: vereis que ali os poucos vasos de barro foram modelados pela mão do oleiro, segundo os lindos modelos da antiguidade.
 
Quem será o vencedor: o homem, ou a máquina? – Esta é a pergunta que a civilização ocidental deve responder. No momento, a resposta é: a máquina.
 
Porém não sereis jamais um grande povo no Brasil, enquanto a vossa resposta não for esta:
 
“O homem é quem rege, e não a máquina.”
 
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O artigo “A Máquina Ameaçando o Ser Humano” foi publicado dia 11 de novembro de 2018.
 
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Em 14 de setembro de 2016, um grupo de estudantes decidiu criar a Loja Independente de Teosofistas. Duas das prioridades da LIT são tirar lições práticas do passado e construir um futuro saudável.
 
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