Como a Ruptura da Rotina Psicológica
Pode Abrir as Portas Para a Vida Mística
 
 
Carlos Cardoso Aveline
 
 
 
João de Deus escolheu como missão amparar os doentes, os que estão
morrendo, os pobres e miseráveis em geral, assim como os médicos e enfermeiros.
 
 
 
Talvez se possa dizer que de santo e de louco quase todos nós temos um pouco. Vejamos por exemplo a experiência do santo patrono dos hospitais e dos doentes.
 
João Cidade, mais tarde São João de Deus, é o criador da Ordem Hospitaleira. Ele nasceu em Portugal em oito de março de 1495. Faltavam cinco anos para a descoberta oficial do Brasil. Enquanto ainda criança, embora fosse amado pelos pais, fugiu para a Espanha. Uma atitude radical e pouco sensata.  
 
Inicialmente, teve sorte no seu novo país. Foi adotado, informalmente, por uma boa família de gente honesta. Mas o apego e o conforto não eram sua vocação. Ele sempre “queria algo mais”. Chegando à adolescência, João Cidade deixou a família adotiva para ser soldado. A carreira militar o levou a um fracasso completo. Meio sem rumo, ele voltou à sua terra natal e foi viver na diocese de Évora. Enfrentou então no plano psicológico o carma do passado.  Arrependeu-se profundamente de ter abandonado os pais. Havia motivos para isso. A vida dos seus pais havia sido arruinada. A mãe morrera de desgosto não muito tempo depois da sua fuga. O pai havia ido morar num convento, onde viveu alguns anos dedicado às orações, antes de morrer em paz.
 
Frustrado consigo mesmo, João Cidade vai novamente para a Espanha. Trabalha algum tempo como pastor no campo. Mais adiante muda-se para a África. Vai para Gibraltar e passa a trabalhar como vendedor ambulante de livros, viajando dali por toda Andaluzia. Lê muito. Dedica-se a livros religiosos. Um dia, tem uma visão: Jesus diz a ele, pessoalmente, que deve ir à cidade de Granada, porque ali encontrará a sua cruz. João obedece. Meses depois, em Granada, o vendedor de livros assiste a pregações do Beato João de Ávila, e com isso começa a viver a sua crise de iluminação.
 
Querendo expiar as suas culpas, purificar-se e reparar os seus erros, João Cidade passa a distribuir de graça os livros religiosos que vendia. Toma também outras atitudes excêntricas. O povo, agitado, reúne-se a seu redor nas ruas. As pessoas o chamam de louco. A sua alma rompe com a “noção de normalidade”, a visão de mundo convencional que é necessário compartilhar em sociedade. 
 
Esta “noção de normalidade” é feita de padrões vibratórios médios, sustentados por convenções sociais. A percepção de normalidade tem aspectos positivos inegáveis e merece o nosso cauteloso respeito porque é muito útil. Mas o apego cego a esta normalidade também preserva a ignorância espiritual e reproduz a mediocridade de um modo bastante infeliz. A ruptura com a rotina é necessária para alcançar um nível superior de consciência. Ao mesmo tempo, a perda do apego é amarga. Uma outra noção de normalidade terá de ser construída. Os novos horizontes devem incluir uma visão mais ampla e profunda das coisas.
 
Quando a crise do despertar espiritual é vista como “loucura”, o que está ocorrendo é que a alma rompe com uma lógica estreita e uma estrutura de vida que se tornou incompatível com o crescimento da sabedoria do espírito. Com frequência a ruptura é semelhante a uma febre cármica. Constitui um processo perigoso e  acelerado de purificação. Os desequilíbrios do despertar devem ser evitados tanto quanto possível. O mais correto é que a expansão da consciência ocorra sem a perda da estabilidade, mas isso nem sempre está ao nosso alcance.  
 
O despertar espiritual raramente é fácil, porque desafia o hábito coletivo de apegar-se ao conforto material cego. Nem sempre o carma permite evitar que haja uma crise visível na relação entre o peregrino e a sua família, ou a comunidade.
 
Um Santo Doido na Itália
 
Séculos antes de João Cidade, na Itália, São Francisco de Assis, quando jovem, passou por um processo similar. Filho dileto de um comerciante rico, Francisco abandonou as suas roupas caras e elegantes para mendigar nas ruas. Sua atitude radical chamou atenção. Agiu de modo chocante e aparentemente desequilibrado. Assustou a família, envergonhou os pais,  e passou a ser o louco da cidade. Finalmente, Francisco rejeitou os pais que o amavam para dedicar-se à vida religiosa, procurando renovar a igreja cristã.[1]
 
Por sua vez, o português João Cidade foi encerrado num hospital da Espanha como louco. Mas quando isso ocorreu ele já despertava para a estabilidade interior do mundo espiritual. Em seguida passou a ajudar os seus colegas de doença. Não pensava no seu sofrimento. Queria aliviar a infelicidade dos outros. O altruísmo cura as feridas da alma. Quando recebeu alta, começou sua vida mística como  “João de Deus”, e passou a ser reconhecido gradualmente como um santo e um sábio.
 
A partir de então a vida de João gira em torno do estudo e do trabalho para amparar os doentes, os que estão morrendo, os desesperados, os pobres e miseráveis em geral, assim como os médicos e enfermeiros que trabalham em estabelecimentos hospitalares.[2]
 
Seu trabalho dá frutos. É até hoje um dos santos mais prestigiados do mundo. Ao lado de Santo António de Lisboa e Pádua, João de Deus está entre os principais santos portugueses. É um dos santos católicos cujas vidas transmitem numerosas lições teosóficas e são exemplos práticos de sabedoria universal.
 
A visão da vida adotada por João é profundamente estoica. Não há nela  espaço para ilusões. Até o mais leal dos nossos amigos, diz ele, pode falhar conosco, ainda que não queira. O desapego é fundamental. A teosofia clássica afirma:
 
“A inteligência é imparcial: ninguém é teu inimigo; ninguém é teu amigo. Todos são teus instrutores.”[3]
 
Vejamos o que São João de Deus escreveu, lembrando que segundo a filosofia esotérica a ideia de “Jesus Cristo” simboliza sobretudo a nossa própria alma imortal:
 
“Confiai só em Jesus Cristo. Maldito seja o homem que confia noutro homem. Dos homens hás de ser desamparado queirais ou não; mas de Jesus Cristo que é fiel e durável não o serás. Tudo perece, só as boas obras ficam.” [4]
 
Traduzindo estas palavras – aparentemente amargas – para uma linguagem do século 21, será possível afirmar que este trecho significa:
 
“Faça o bem sem esperar pela gratidão alheia. Confie na Lei Suprema e em sua própria alma espiritual. Plante o bem, persevere, e, como resultado, mais cedo ou mais tarde, o bem que você plantou voltará para você – acrescido.”
 
NOTAS:
 
[1] “São Francisco de Assis”, livro de Piero Bargellini, Editora Universidade de Brasília, 1980, 146 páginas em tamanho ofício, ver pp. 27 a 35.
 
[2] “São João de Deus – Sua Vida e Sua Obra”, de Frei Bernardino de S. José, terceira edição actualizada, Telhal, Portugal, 1964, 68 páginas, ver pp. 01 a 29.
 
[3] “Luz no Caminho”, de M.C., livro de 86 páginas publicado por  The Aquarian Theosophist, em Portugal  em 2014, com tradução, notas e prólogo de Carlos Cardoso Aveline.  Ver p. 16.
 
[4] “S. João de Deus, Sua Vida – Sua Obra”, de Marques Gastão, Centro do Livro Brasileiro, Lisboa – 1982, 733 páginas, ver p. 224.
 
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O texto acima foi publicado nos websites da Loja Independente de Teosofistas em 4 de março de 2024. Uma versão inicial e anônima dele faz parte da edição de março de 2023 de “O Teosofista”, pp. 5 a 7.
 
A imagem que ilustra “João de Deus, Louco, Santo e Sábio” é reproduzida da obra “La Granada de Oro”, de Antonio Alarcón Capilla, publicada em Madri em 1950, com 324 páginas.  
 
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Helena Blavatsky (foto) escreveu estas palavras: “Antes de desejar, faça por merecer”. 
 
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