Pomba Mundo
 
Por Que a Felicidade Surge Pela Devoção Altruísta
 
 
Viktor E. Frankl
 
 
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Nota Editorial:
 
Na citação de abertura do texto a seguir, substituímos a palavra “vícios”, que em português tem uma conotação negativa específica, pela palavra “erros”, mais ampla e que se aplica a todos.    
 
O artigo é reproduzido da obra “A Visão Espiritual da Relação Homem & Mulher”, Compilação de Scott Miners,  Editora Teosófica, 1992, Brasília, 257 pp., pp. 69-75. A reprodução foi autorizada pela Editora Teosófica. Embora o texto tenha sido escrito no século 20, a sua atualidade durante o século 21 continua sendo revolucionária. Título original: “A Despersonalização do Sexo”.
 
(Carlos Cardoso Aveline)
 
 
Amor, Sexo e Autotranscendência
 
Viktor E. Frankl
 
 
 
“Se o desejo de ser honesto for maior que
o desejo de ser ‘bom’ ou ‘mau’, então o poder
terrível dos nossos erros revelar-se-á. E atrás do
erro surgirá o temor (o temor de ser excluído da
vida) e atrás do temor, a dor (a dor de não ser amado)
e atrás desta dor do isolamento, o mais íntimo, o mais
recôndito, o mais secreto de todos os desejos humanos:
o desejo de amar e entregar-se em amor e fazer parte
da corrente viva que chamamos de fraternidade. E
no momento em que o amor é descoberto por
detrás do ódio, todo ódio desaparece.”
 
(Fritz Kunkel, “In Search of Maturity”)
 
 
 
Quando falamos e pensamos no amor, devemos lembrar que ele é um fenômeno especificamente humano. Devemos cuidar para que ele seja preservado em sua humanidade, ao invés de ser tratado de forma reducionista. O reducionismo é um procedimento pseudocientífico que toma os fenômenos humanos e, ou os reduz, ou os deduz a partir de fenômenos inferiores ao homem. O amor, por exemplo, é frequentemente interpretado de maneira reducionista, como mera sublimação dos impulsos e instintos sexuais que o homem compartilha com todos os outros animais. Tal interpretação bloqueia o real entendimento de todos os diversos fenômenos humanos.
 
Na verdade, o amor é aspecto de um fenômeno humano mais abrangente que vim a chamar de autotranscendência.[1] Com este termo desejo expressar que o ser humano sempre se relaciona e está orientado em direção a algo externo a si. O homem não está, como algumas teorias motivadoras da atualidade gostariam de nos fazer crer, preocupado basicamente em gratificar necessidades e satisfazer impulsos e instintos e, em assim procedendo, manter ou recuperar a homeostase, isto é, o equilíbrio interior, um estado sem tensões. Por mérito da qualidade de autotranscendência da realidade humana, o homem está preocupado basicamente em ir além de si mesmo, seja na direção de um significado que ele queira preencher, ou na direção de um outro ser humano a quem ele deseje encontrar no plano amoroso. Em outras palavras, a autotranscendência manifesta-se através do serviço a uma causa ou pelo amor a uma outra pessoa.
 
O encontro amoroso, no entanto, impede que se considere e se utilize outro ser humano como um meio para atingir um fim. Ele impede, por exemplo, que usemos alguém como um mero instrumento para reduzir as tensões provocadas e criadas pelos impulsos e instintos libidinosos ou agressivos. Tal atitude para com o parceiro é, de qualquer modo, uma distorção do sexo humano.
 
Isto se deve ao fato de que o sexo humano é sempre mais do que simples sexo, e é mais do que simples sexo precisamente na medida em que serve e funciona como a expressão física de algo metassexual, a saber, a expressão física do amor. E somente na medida em que o sexo desempenha esta função de corporificação, de encarnação do amor – apenas então ele também atinge o clímax de uma experiência verdadeiramente recompensadora. Assim, Maslow estava certo ao ter salientado que as pessoas que não sabem amar nunca extraem do sexo a mesma emoção como as que amam. E dentre aqueles fatores que mais contribuíram para enaltecer a potência ao grau mais elevado, segundo 20.000 leitores de uma revista americana de psicologia que responderam a um questionário sobre o assunto, estava o romantismo, quer dizer, algo que se aproxima do amor.
 
É claro que não há muita precisão em dizer que somente o sexo humano é mais do que mero sexo. Conforme Irenaeus Eibl-Eibesfeldt [2] evidenciou, em alguns vertebrados, o comportamento sexual serve à coesão grupal, e este é particularmente o caso dos primatas que vivem em bandos: assim, em determinados símios, a relação sexual às vezes supre de forma exclusiva uma finalidade social. Nos humanos, afirma Eibl-Eibesfeldt, não há dúvida de que a relação sexual serve à propagação da espécie, mas também à relação monogâmica entre os parceiros.
 
Porém, embora o amor seja um fenômeno humano por sua própria natureza, a humanidade do sexo é apenas o resultado de um processo de desenvolvimento – é o produto do amadurecimento progressivo.[3] Comecemos com a diferenciação feita por Sigmund Freud entre a finalidade dos impulsos e instintos e o seu objeto: poder-se-ia dizer que a finalidade do sexo é a redução das tensões sexuais, ao passo que o seu objeto é o parceiro sexual. Porém, no meu modo de ver, isto só se aplica à sexualidade neurótica. Para a pessoa madura, o parceiro não é de forma alguma um “objeto”; a pessoa madura, ao contrário, vê nele um outro sujeito, um outro ser humano, em sua própria humanidade; e, se realmente o amar, até mesmo percebe nele uma outra pessoa, o que significa que o vê em sua singularidade – e só o amor capacita uma pessoa a captar outra pessoa nessa mesma singularidade que constitui a pessoalidade de um ser humano.[4]
 
A promiscuidade é, por definição, exatamente o oposto de uma relação monogâmica. Um indivíduo que cede à promiscuidade não precisa considerar a singularidade de um parceiro e, portanto, não pode amá-lo. Uma vez que somente o sexo que esteja embutido no amor pode ser realmente recompensador e satisfatório, a qualidade da vida sexual de um tal indivíduo é inferior. Não é de admirar, então, que ele tente compensar esta falta de qualidade com a quantidade de atividade sexual. Isto, a seu turno, exige uma estimulação sempre mais variada e crescente, como a que é fornecida, por exemplo, pela pornografia.
 
Disto se poderia depreender que não somos perdoados de modo algum por glorificarmos tal fenômeno de massa como a promiscuidade e a pornografia, considerando-os algo progressivos; eles são antes regressivos; afinal, são sintomas de um retardamento que deve ter ocorrido na maturação sexual da pessoa.
 
Não devemos esquecer que o mito do sexo-pelo-prazer-do-sexo (ao invés de permitir que o sexo se torne a expressão física de algo metassexual), enquanto algo progressivo, é vendido e difundido pelas pessoas que sabem que isto é um negócio lucrativo.
 
O que me intriga é o fato de a nova geração comprar não só o mito, mas também a hipocrisia que ele oculta. Em uma época como a nossa, em que a hipocrisia nos assuntos relativos a sexo é tão condenada, é estranho ver a hipocrisia daqueles que propagam uma certa liberação de qualquer censura passar despercebida. Será assim tão difícil reconhecer que sua real preocupação é a liberdade ilimitada para ganhar dinheiro? [5]
 
Mas não pode haver negócio bem sucedido a menos que exista uma necessidade substancial a ser atendida por este mesmo negócio. E, de fato, estamos presenciando, em nossa cultura atual, o que se poderia chamar de “inflação do sexo”. Só podemos entender este fenômeno em oposição a um fundo muito amplo. Hoje em dia somos confrontados com um número sempre crescente de clientes que reclamam de uma sensação de ausência de significação, de vazio, vácuo interior, vazio existencial, como eu costumo chamá-lo. Isto se deve a dois fatos: em contraste com o animal, o homem não é informado pelos impulsos e instintos quanto ao que deve fazer; e, em contraste com o homem de tempos atrás, as tradições e os valores não lhe dizem mais o que deveria ser feito. Em nossos dias, ele, às vezes, não sabe mais o que realmente deseja.[6]
 
É precisamente dentro deste vazio existencial que a libido sexual está se hipertrofiando. E é esta hipertrofia que provoca a “inflação do sexo”. Como em qualquer espécie de inflação – por exemplo, a do mercado financeiro – a inflação sexual está associada à desvalorização. E o sexo está tão desvalorizado quanto está desumanizado. Assim, observamos a tendência atual de levar uma vida sexual que não esteja integrada na vida particular da pessoa, mas, ao contrário, orientada pelo prazer. A despersonalização do sexo é compreensível uma vez que a diagnostiquemos como sintoma daquilo que denomino frustração existencial: a frustração da procura de um sentido pelo homem. [7]
 
Essas são as causas; mas o que dizer dos efeitos? Quanto mais a procura de sentido de alguém for frustrada, mais o indivíduo embarca no que, desde a Declaração de Independência da América, tem sido chamado de “busca da felicidade”. Em última análise, a busca pretende servir ao propósito da intoxicação e da estupefação. Mas, que tristeza, é a própria busca da felicidade que a condena ao fracasso. A felicidade não pode ser perseguida porque ela deve seguir-se ao natural, e ela só pode vir como resultado do viver a autotranscendência, a dedicação e a devoção para com a causa a ser servida, ou a pessoa a ser amada.
 
Em nenhum outro lugar esta verdade é mais perceptível do que no campo da felicidade sexual. Quanto mais a transformarmos em um objetivo, tanto mais nos escapará. Quanto mais um homem tentar demonstrar sua potência, mais propenso estará a tornar-se impotente; e quanto mais uma mulher tentar demonstrar a si mesma que é capaz de obter gozo completo, maior tendência terá a ser vítima de frigidez. E a maior parte dos casos de neurose sexual de que tomei conhecimento nas minhas muitas décadas de prática como psiquiatra pode ser facilmente atribuída a este estado de coisas.
 
Assim, a tentativa de curar tais casos tem de começar pela eliminação do caráter de exigência que o neurótico sexual geralmente imputa e atribui à realização sexual. Elaborei a técnica por meio da qual este tratamento pode ser implementado, em artigo publicado no International Journal of Sexology, em 1952.[8] O que desejo afirmar aqui, contudo, é o fato de que nossa cultura atual – que, devido à motivação delineada acima, idolatra a realização sexual – contribui ainda mais com o caráter de exigência experimentado pelo neurótico sexual e, assim, com a sua neurose.
 
O uso da pílula, que permitiu maior exigência e espontaneidade às parceiras, encorajou involuntariamente esta tendência. Autores americanos observam que o movimento de liberação feminina, por ter libertado as mulheres de antigos tabus e inibições, trouxe como uma de suas consequências que até mesmo as colegiais se tornaram muito mais exigentes quanto à sua satisfação sexual, reclamando-a de seus colegas de escola.[9] O resultado paradoxal foi uma nova série de problemas chamados de “impotência colegial” ou “a nova impotência”.[10]
 
Os tabus e inibições vitorianos estão desaparecendo, e, à medida em que essa liberdade verdadeira vai sendo obtida, um passo à frente está sendo dado. Porém, a liberdade ameaça degenerar em mera permissão e arbitrariedade, a menos que seja vivenciada em termos de responsabilidade. É por isso que não canso de recomendar que a Estátua da Liberdade da Costa Leste seja complementada por uma Estátua da Responsabilidade na Costa Oeste.
 
NOTAS:
 
[1] Frankl, V.E., “Psychotherapy and Existentialism”, Washington Square Press, Nova Iorque, 1967.
 
[2] Eibl-Eibesfeldt, I., “Frankfurter Allgemeine Zeitung”, 28 de fevereiro de 1970.
 
[3] Frankl, V.E., “The Doctor and the Soul”, Vintage Books, Nova Iorque, 1973.
 
[4] Frankl, V.E., “Man’s Search for Meaning”, Pocket Books, Nova Iorque, 1963.
 
[5] Frankl, V.E., “Encounter: The Concept and Its Vulgarization”, The Journal of the American Academy of Psychoanalysis, 1 (1973), p. 73.
 
[6] Frankl, V.E., “The Feeling of Meaninglessness: A Challenge to Psychotherapy”, The American Journal of Psychoanalysis, 32 (1972), p. 85.
 
[7] Frankl, V.E., “Sede de Sentido”, Quadrante, 087706-9 (código do catálogo).
 
[8] Frankl, V.E., “The Pleasure Principle and Sexual Neurosis”, The International Journal of Sexology, 5 (1952), p. 128.
 
[9] Ginsberg, G.L., Frosch, W.A. and Shapiro, T., “The New Impotence”, Arch. Gen. Psychiat., 26 (1972), p. 218.
 
[10] Konrad Lorenz mostrou não ser somente entre os humanos que o caráter de exigência ou, no que diz respeito ao assunto, a agressividade sexual por parte da fêmea pode resultar na impotência do macho; isto ocorre também entre os animais. Existe uma espécie de peixe cujas fêmeas costumam nadar “de modo faceiro” para longe dos machos em busca de acasalamento. Todavia, Lorenz conseguiu treinar uma fêmea a fazer o oposto – aproximar-se à força do macho. A reação deste? Exatamente a que suspeitaríamos que um colegial demonstrasse: completa incapacidade de concluir a relação sexual!
 
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Em setembro de 2016,   depois de cuidadosa análise da situação do movimento esotérico internacional, um grupo de estudantes decidiu formar a Loja Independente de Teosofistas, que tem como uma das suas prioridades a construção de um  futuro melhor nas diversas dimensões da vida. 
 
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