Pomba Mundo
 
Cartas à Índia Pedem o Fim de Um Erro Histórico
 
 
Carlos Cardoso Aveline
 
 
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William Q. Judge (1851-1896)
 
 
 
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Nota Editorial de 2021
 
O artigo a seguir foi publicado pela primeira
vez na revista teosófica internacional “Fohat”,
do Canadá, edição do Verão (Summer) de 2007.
O título original é “Yearly Letters to Adyar: A
Few Seeds For a Better Dialogue in the Movement”.
 
A corrente de Cartas Anuais a Adyar seguiu até o
ano de 2013, quando a sra. Radha Burnier faleceu,
criando um vazio institucional na sociedade que presidia.
A falta de uma liderança internacional consolidada em
2014 tornou mais adequado interromper a corrente de cartas.
 
Naquele momento o êxito da campanha já era grande. Ela
trouxe uma mudança cultural e uma visão mais equilibrada
da importância de William Judge na história do movimento.
 
É verdade que Judge cometeu erros graves por falta
de discernimento. Entre eles, ter contatos imaginários
com Mahatmas, depois da morte de H. P. Blavatsky.
 
As acusações de que ele teria “forjado” cartas, no
entanto, não fazem sentido. Os erros de Judge não
justificavam  um “processo de julgamento” tal
como foi organizado contra ele. Dois fatos centrais
demonstram isso. Em primeiro lugar, as conversas
imaginárias com Mestres e outras formas de autoilusão
com poderes ocultos já tinham ocorrido (com Alfred
Sinnett, por exemplo) em vida de HPB. E não tinham sido
motivo de qualquer forma de perseguição ou condenação.
Em segundo lugar, porque a própria Annie Besant,
enquanto criticava Judge por ter contatos falsos com
mestres, tinha ela também conversas imaginárias com
Adeptos, com ajuda precisamente do sr. Alfred Sinnett.  
 
Iludido, Sinnett havia começado a ter conversas mediúnicas
e falsas com mestres após parar de receber Cartas dos Mestres.
 
Assim, pouco depois da morte de Blavatsky,
ocorrida em 1891, as duas correntes mais numerosas do
movimento – lideradas por Besant e Judge – já haviam
abandonado a teosofia original. O ensinamento autêntico  
teve que ser recolocado em cena lentamente pela Loja
Unida de Teosofistas, a partir do ano de 1909. O valente
esforço de Alice L. Cleather foi relativamente pequeno.
 
Organizada entre 2006 e 2013, a campanha de cartas
internacionais em favor de William Judge obteve a sua meta
de estimular uma atitude de respeito por este cofundador do
movimento em 1875, ao lado de Helena Blavatsky e Henry
S. Olcott. A campanha criou um diálogo e uma melhor
consciência histórica no movimento teosófico. E isso foi
feito na contramão dos “ensinamentos” de J. Krishnamurti,
segundo os quais “não existe lei do Carma”, e portanto,
não há necessidade de tirar lições do passado. Este erro
lamentável foi cometido em parte pela senhora Radha
Burnier, por quem eu tenho profunda admiração e
respeito. Na verdade, quem não aprende com o passado
está condenado a repetir os mesmos erros.
 
(CCA) 
 
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“… Ninguém se preocupa com assuntos
do passado, porque as pessoas estão mais
focadas no trabalho que deve ser feito agora.”
 
[ Radha Burnier, em uma carta de
2006 sobre o “Processo Contra  Judge”.]
 
 
 
Quando assuntos  cruciais estão em jogo, um diálogo pobre é melhor do que nenhum diálogo. Nestas situações, mesmo tentativas limitadas de obter uma comunicação ajudam na produção de  consciência. No seu devido tempo, havendo perseverança,  irão produzir frutos.
 
Em 13 de abril de 2006, alguns poucos estudantes experientes de Teosofia – de diferentes países e associações – passaram a escrever cartas abertas anuais a Radha Burnier, a presidente da maior das  Sociedades Teosóficas existentes hoje, aquela  cuja sede internacional fica em Adyar, na Índia. As cartas têm sido bastante diferentes umas das outras,  porque os seus autores têm backgrounds e pontos de vista variados. No entanto, as cartas possuem uma coisa em comum: elas expressam um desejo de ver a verdade em relação ao chamado “Processo Contra Judge”,  porque a verdade produz justiça, e a justiça faz com que a fraternidade seja possível.
 
Em suas cartas à sra. Radha, estes estudantes pedem que ela reexamine as alegações feitas contra William Q. Judge no século 19, e que mostre provas de que ele forjou mensagens dos Mahatmas, ou então declare que ele é inocente em relação às acusações. Algumas das cartas também sugerem que Adyar deveria abrir os seus arquivos com documentos que dizem respeito ao “Processo Contra Judge”.
 
Desde o início, as publicações “The Aquarian Theosophist”, de Los Angeles, e “Fohat”, do Canadá, apoiaram a iniciativa. O historiador britânico Leslie Price escreveu um artigo sobre a iniciativa no boletim “Psypioneer” [1].  Price escreveu que pode ser feita uma comparação entre as falsas acusações levantadas contra Helena Blavatsky no século 19 pela Sociedade de Pesquisas Psíquicas (S.P.P.),  e as acusações da Sociedade de Adyar contra William Judge.
 
Segundo o artigo, há uma lição a ser tirada do fato de que em 1986 – um século depois de  H.P. Blavatsky ter sido chamada de fraudulenta pela S.P.P. – a mesma entidade finalmente aceitou em  público que as acusações é que eram uma fraude, e H.P.B., inocente. Leslie Price, ele próprio um dos  membros da Sociedade de Pesquisas Públicas que ajudaram na mudança de posição em relação a H.P.B., concorda que a Sociedade de Adyar faria bem em considerar a possibilidade de seguir o exemplo da S.P.P., e revisar sua posição em relação a Judge.
 
A pequena corrente de cartas abertas a Adyar não tem ilusões  de curto prazo. A intenção é fazer com que a iniciativa dure, e  por isso o ritmo é anual.  Em 2006, o primeiro ano, houve seis cartas, de cinco pessoas, desde quatro países: México, Canadá, Brasil e Alemanha. Duas pessoas escreveram cartas da Alemanha, e um teosofista escreveu duas cartas no mesmo ano.
 
A sra. Radha Burnier escreveu curtas respostas a três  das cartas de 2006: as de México, Canadá e Brasil. Em 2007, novas cartas foram mandadas a Adyar, a maior parte delas também datadas de 13 de abril (data de nascimento de William  Judge). Esta vez foram dez cartas e uma mensagem de e-mail, mandadas de seis países: México, Canadá, Reino Unido,  com uma carta cada;  Alemanha (três cartas), Brasil (quatro cartas) e os Estados Unidos (um e-mail).
 
O conteúdo da correspondência gira principalmente em torno da concepção teosófica de tempo. Em 2006, Radha escreveu a José Ramón Sordo no México dizendo que não queria interferir em discussões sobre o passado do movimento.  Ramón respondeu da cidade mexicana de Tepoztlán, Morelos, em 13 de abril de 2007:
 
“Prezada Radha, (….) O que eu estou pedindo não é que você entre em alguma discussão sobre o passado, mas que corrija uma atitude do presente. Sim, eu realmente sei que você viaja muito ao redor do mundo e que você está consciente de que a maior parte dos membros de Adyar nem sabe quem foi William Judge. Naturalmente eles têm a liberdade de ver ou não Judge como um dos fundadores do movimento. Mas, veja bem, este é que é o problema. Havia 16 pessoas presentes na formação – palavra usada por Henry Olcott – da Sociedade Teosófica Original em Nova Iorque [em 1875], mas só três deles foram os reais fundadores que trabalharam pela Causa até o final das suas vidas; e isso não é uma questão de opinião, mas constitui um fato.  Qualquer um pode dizer que o Sol nasce no Norte, mas o fato é que ele nasce no Leste. Você diz que nas ‘Cartas dos Mahatmas’ os Mestres só fazem referência a dois fundadores; sim, é verdade. Mas nós também temos as palavras da principal fundadora da Sociedade, HPB, afirmando que Judge é um dos três fundadores; ‘ingratidão é um  crime em Ocultismo, e vou dar um exemplo mencionando o caso de W.Q. Judge. Ele é um dos três fundadores da Sociedade Teosófica, os únicos três que permaneceram firmes como rocha em sua dedicação à Causa.’ (‘Collected Writings’, XII, p. 593) (….) A única coisa que desejo é que você reconheça Judge como um dos três fundadores principais da Sociedade. No entanto, em sua resposta você evita enfrentar a questão.  (….) Esperando que sua saúde já tenha melhorado bastante,  sincera e fraternalmente,  J. Ramón Sordo.”
 
De Londres, Inglaterra,  Will Windham escreveu:
 
“Prezada sra. Burnier, (….) No  aniversário de W.Q. Judge, lembramos da sua vida com afeto e  gratidão, e lembramos o trabalho que ele fez pelo movimento teosófico junto com a sra. Blavatsky, o coronel Olcott e muitos outros. Ele deixou atrás de si o legado de uma vida exemplar, da qual todo chela devotado pode tirar proveito, e uma obra escrita que é ao mesmo tempo simples, enobrecedora e profunda. A sua tradução do ‘Bhagavad Gita’,  os seus Comentários sobre o ‘Gita’ e a sua versão dos Aforismos de Patañjali mostram uma profunda compreensão da natureza humana.  Estas e outras obras dele são reconhecidas por suas qualidades perenes, e são estudadas com proveito por muitos. (….) Não há vergonha alguma em admitir erros cometidos no passado. Na  verdade, é necessária uma força interior para corrigi-los, e isso será apreciado, sem dúvida, por todo comentador dotado de justiça.  Em casos como o de Judge, o perigo maior para nós é de omitir-nos em nosso dever de corrigir os erros, quando surge uma oportunidade de fazê-lo. Portanto, nós solicitamos respeitosamente que você reconsidere a posição da Sociedade em relação às acusações feitas contra W.Q.J., e que faça tudo o que estiver ao seu alcance para que haja justiça onde ela é necessária. Atenciosamente, W. Windham.”
 
De Florianópolis, no Brasil,  Régis Alves de Souza  decidiu participar da corrente de cartas abertas:  
 
“Prezada sra. Radha,  (….)   Saudações fraternais. Sou membro da Sociedade Teosófica de Adyar desde 1985.  Recentemente fui informado da existência da Loja Unida de Teosofistas, L.U.T., uma rede internacional de estudantes de Teosofia presente em cerca de 13 países e cuja atuação é bastante significativa para o movimento teosófico como um todo.  Foi uma surpresa agradável ver que os livros e as revistas internacionais da L.U.T. nos dão informações extremamente valiosas ?  as quais, por algum motivo lamentável,  têm sido até hoje completamente desconhecidas por muitos. O conteúdo básico desta carta aberta é compartilhado com cartas simultâneas que serão mandadas por outros teosofistas brasileiros. Seu objetivo é sugerir respeitosamente que a Sociedade Teosófica de Adyar re-examine os documentos do processo começado por Annie Besant e Henry Olcott contra William Judge nos anos 1890. (….)  O processo de perseguição contra William Judge dentro da Sociedade Teosófica de Adyar,  durante o século 19, está bem documentado em vários livros. Esse fato levou à divisão do movimento. (….)  Gravemente desinformada,  a maior parte dos membros da ST de Adyar  honestamente acredita que William Judge, um dos principais fundadores do movimento em 1875, cometeu fraudes.  Estes teosofistas têm o direito de conhecer a verdade, assim como o público em geral tem, também. Não há, ou não deve haver, religião ou interesse corporativo acima da verdade, e os fatos devem ser aceitos e reconhecidos por todos nós.  Esta é a razão pela qual faço, fraternalmente, a sugestão expressada acima. Atenciosamente, Régis Alves de Souza.”
 
Esta carta teve ampla circulação entre teosofistas brasileiros. Outras  cartas foram mandadas do Brasil por  Rejane “Chica” Tazza,   Valmir Aguiar, e eu mesmo. Dos Estados Unidos, depois de ler um informe sobre as cartas na edição de maio de 2007 do jornal eletrônico “The  Aquarian Theosophist”, Steven Levey escreveu de Washington um e-mail para Adyar:
 
“Prezada presidente Burnier,  (….) Naturalmente, não sei se você está acompanhando a questão recente em relação ao esclarecimento sobre a posição de William Quan Judge no Movimento, mas espero que você tenha percebido a importância da questão. A preocupação é a de que, quando alguém ocupa posições organizativamente importantes em uma Sociedade que é chamada de Teosófica,  possa ter o discernimento necessário para saber  a diferença entre  questões de  mentalidade menor, baseadas em intelectualismos da mente inferior, e os ideais verdadeiramente Noéticos. (….)  Ainda, solicitamos de você que admita abertamente para você mesma, e para aqueles que você representa, esta tolice do passado. Nomes pessoais e seguidores não são importantes quando a Verdade está em questão, e deveria ser fácil fazer com que aqueles que perpetraram tais inverdades no passado sejam reconhecidos como o que são, porque eles impedem que a Sociedade de hoje tenha como base a Verdade, e que o nome de William Quan Judge possa ocupar o seu devido lugar. (….)  Steven Levey.”
 
Do Canadá, Bruce MacDonald,  o editor da revista  “Fohat”, escreveu o  seguinte:
 
“Prezada sra. Burnier, –  Passou-se um ano desde a minha última carta sobre William Q. Judge. Naquela ocasião, você expressou uma falta de interesse em permitir que historiadores examinem os Arquivos da S.T., em busca de material que possa mostrar a inocência do sr. Judge aos olhos daqueles que ainda se apegam à crença fantasiosa de que ele teria forjado mensagens dos Mestres.  Entendo que, em sua opinião, as injustiças perpetradas no passado contra os inocentes não são assunto a ser examinado pelos teosofistas de hoje. (….) Eu gostaria de defender um ponto de vista diferente. Em primeiro lugar, a função de  presidente da Sociedade Teosófica é contínua. (….) Um erro cometido pela presidência pode colocar a Sociedade Teosófica em um rumo radicalmente oposto aos princípios sobre os quais ela foi fundada. É dever,  portanto, de cada novo responsável pela presidência, revisar as decisões do passado e garantir que a Sociedade esteja em um rumo coerente com os seus princípios fundamentais. (….) Como ocupante da presidência da Sociedade Teosófica, você tem o dever moral, e inclusive Cármico, de corrigir os erros que vêm destruindo o Espírito da Sociedade.  Confio em que você estará à altura da tarefa.”
 
Em sua resposta a esta carta de Bruce, a sra. Radha mais uma vez não conseguiu perceber a relação viva que há entre passado e presente.  Por outro lado, não compreendeu que cento e vinte anos são pouco tempo em termos históricos,  e chamou os acontecimentos de 1894-95 de “passado distante”.  Ela escreveu, em 25 de abril de 2007:
 
“Prezado sr. MacDonald,  Recebi sua carta de 13 de abril de 2007. Pode-se concordar ou não com Annie Besant e seus colegas, mas deve-se aceitar que a influência e o papel dela na Sociedade Teosófica foi muito grande. Não faz sentido depois de tantos anos tentar estabelecer o sr. Judge, quaisquer que tenham sido os seus méritos, como o único teosofista de valor. (….) Isso tudo é passado distante, e as pessoas dificilmente lembram do que passou muitos anos atrás. Sincera e atenciosamente, Radha Burnier.”
 
De Berlim, na Alemanha,  Sieglinde Plocki, uma teosofista experiente e que segue a tradição de Point Loma, escreveu em 2007 a sua segunda carta anual, da qual selecionamos estas frases:
 
“Prezada sra. Radha Burnier,  (….)  Gostaria de lembrar mais uma vez a você e aos dirigentes da Sociedade de Adyar que você, Radha, detém a chave neste caso. Está em suas mãos a possibilidade de corrigir as injúrias e enganos do passado. Tal ação seria altamente significativa em termos de carma e levaria seguramente a um  fortalecimento da associação e a uma melhor cooperação entre todas as Sociedades Teosóficas, porque fortaleceria a base comum do nosso trabalho. Peço respeitosamente a você que perceba a importância da sua responsabilidade, assim como as grandes perspectivas para o futuro que estão agora em suas mãos.  Estamos vivendo em tempos de transformações súbitas.  Que as mudanças ocorram para o bem das Sociedades Teosóficas,  com base na justiça e na retidão entre teosofistas e entre Sociedades Teosóficas -;  justiça, de uma vez por todas, para William Quan Judge.”
 
Outras cartas foram mandadas por via aérea da Alemanha por Ralph Kammer e Gianina Kammer, que assinaram a mesma carta, e por Evan Jahn, que escreveu em alemão.
 
A carta de Sieglinde Plocki recebeu esta resposta da sra. Radha, que escreveu em 25 de abril de 2007:
 
“Prezada sra. Plocki,  Agradeço sua carta de 12 de abril de 2007. Não acredito que a justiça pode ser estabelecida escrevendo cartas. De qualquer modo, não pretendo escrever sobre a questão de Judge depois de todos estes anos. Penso que é hora de avançar com o trabalho que precisa ser feito. Com os melhores votos, atenciosamente, Radha Burnier.”
 
O conteúdo da carta é sem dúvida original.  A  sra. Radha parece admitir que há uma injustiça, mas afirma que ela não poderia ser corrigida escrevendo cartas. Poderíamos perguntar, então: “se cartas não são o melhor instrumento, qual seria ele?”  Pode ser que  cartões postais ou telefonemas sejam mais eficazes para estimular as autoridades de Adyar a que avancem pelo caminho da justiça. Permanece, no entanto, o fato de que Radha Burnier admite a injustiça; e isto realmente estabelece um terreno comum entre nós. A mesma carta, com seu estilo telegráfico,  tem outra frase significativa na qual Radha confessa:
 
“…não pretendo escrever sobre a questão de Judge depois de todos estes anos.”
 
Aqui, outra vez, a presidente internacional da Sociedade de Adyar sugere que não vale a pena escrever sobre o passado. Ela parece pensar que os fatos passados não têm utilidade ou  significado. Será então que os estudantes deveriam deixar de estudar escrituras antigas,  porque “já se passaram todos estes anos” desde que foram escritos?  Ou ela está sugerindo que a Sociedade de Adyar deve evitar o exame honesto dos seus próprios erros passados, para que possa, no futuro, continuar apegada às mesmas e velhas ilusões?
 
Todos aceitamos a ideia de que “é hora de avançar com o trabalho que precisa ser feito”. No entanto, nenhum teosofista pode realmente “avançar com o trabalho que precisa ser feito”, a menos que possua uma visão adequada dos acontecimentos passados, o que permite saber onde está situado.  Perceber “qual é, exatamente, o trabalho que precisa ser feito” é algo que  requer uma visão correta. E não pode haver visão correta nem verdadeira fraternidade na ausência de justiça e ética. 
 
Sob a superfície, porém,  a mensagem da sra. Radha não é tão negativa quanto parece. Há algo para ser lido nas entrelinhas. As coisas que não são ditas são,  às vezes,  tão importantes quanto as coisas que são ditas.  Na carta para Sieglinde Plocki, como nas  outras cartas,  a  sra. Radha não afirma que Judge é culpado. Ela não afirma que ele não foi vítima de traição. Ela tenta dizer, no entanto, que tal injustiça é hoje irrelevante, porque pertence ao passado. Esta é uma tese equivocada, como José Ramón Sordo mostrou em sua carta de 2007 para ela:
 
“O que eu estou pedindo não é que você entre em alguma discussão sobre o passado, mas que corrija uma atitude do presente.”
 
No entanto, a sra. Radha  continua apegada ao mesmo padrão. Em uma das suas cartas anteriores sobre o “Processo Contra Judge”,  datada de 22 de maio de 2006, ela escreveu:
 
“Não vejo sentido em reabrir o processo contra Judge e gastar tempo e energia em relação a eventos  que ocorreram muito tempo atrás. Com a exceção de algumas pessoas como você, ninguém se preocupa com assuntos do passado, porque as pessoas estão mais focadas no trabalho que deve ser feito agora.”
 
Nesta carta ela continua a afirmar implicitamente que todas ações passadas são coisas a serem esquecidas; no entanto, a existência da Lei do Carma e da lei dos ciclos não pode ser cancelada pelos seguidores de Krishnamurti, por mais que eles tentem. O único e pobre argumento da  sra. Radha, presente nas suas várias cartas,  é que a traição contra Judge é uma coisa de “tantos anos atrás”. Ela admite nas entrelinhas que Judge foi prejudicado, e portanto também o movimento teosófico. No entanto, ela não consegue ver que em qualquer “momento presente” o ato de corrigir nossos erros do passado é parte do nosso melhor Dharma e  da nossa melhor Oportunidade. As tentativas de negar este princípio universal resultam de uma incapacidade de perceber como evoluem todos os seres, e de que modo a Lei do Carma,  a lei do tempo, trabalha em seu desenvolvimento histórico.
 
Nas cinco cartas que escreveu até o momento sobre a questão, Radha Burnier não pôde negar, mas cuidadosamente evitou admitir, três fatos:
 
1) A perseguição política contra William Judge em 1894-95 foi baseada em rumores falsos.
 
2) Este acontecimento causou a primeira divisão estrutural do movimento.
 
3) A verdade e a justiça deverão ser restabelecidas mais cedo ou mais tarde sobre este ponto,  que é central tanto para o presente como para o futuro do movimento.
 
Há fortes razões, embora elas não sejam ditas, para que Radha Burnier não se exponha ao ponto de dizer que Judge merecia ser perseguido e acusado de fraude.  Ela certamente sabe que o fato foi uma injustiça, como já ficou óbvio, especialmente depois da publicação em 2004 do livro “The Judge Case” (“O Processo Contra Judge”), de Ernest Pelletier.  Além disso, os próprios acusadores deixaram de lado as acusações contra William Judge nos anos 1890 (sem admitir que ele era inocente).
 
A sra. Radha sabe que o seu próprio pai, N. Sri Ram, enquanto era presidente internacional da Sociedade Teosófica de Adyar, apoiou a publicação do livro pró-Judge “Damodar and the Pioneers of the Theosophical Movement” (“Damodar e os Pioneiros do Movimento Teosófico”), de Sven Eek.  A editora teosófica de Adyar (TPH) publicou o livro em 1965, com um prefácio favorável escrito pelo próprio Sri Ram.
 
O volume “Damodar and the Pioneers” é um passo preparatório importante para aquele momento futuro  em que a Sociedade de Adyar como um todo irá, finalmente,  aceitar os fatos. O livro de Sven Eek inclui textos longos de Judge e sobre ele, inclusive o texto biográfico de 23 páginas, a correspondência de 50 páginas entre Judge e Damodar, e as cinco páginas de desenhos da sede internacional de Adyar, feitos por Judge em 1884. O livro também reproduz  um informe de Laura Holloway sobre o seu histórico encontro final com Henry Olcott em 1906. 
 
Olcott estava sofrendo de depressão devido à situação do movimento depois da traição contra Judge, e os sentimentos depressivos tiveram uma relação com a  sua doença final.  Na conversa, que ocorreu pouco antes da sua morte, Olcott faz uma severa autocrítica e admite que havia sido injusto com William Judge.  Sua atitude havia mudado. Agora nos seus últimos meses  de vida, Olcott confessava que estava sentindo profundamente a falta da presença de H.P.B. no movimento. E ele disse a Laura Holloway:
 
“Nós aprendemos muito e superamos muita coisa, e eu vivi muito e aprendi mais ainda, especialmente em relação a Judge.  (….) Agora sei, e você gostará de ouvir isto, que eu fui injusto com Judge, não de propósito ou com maldade; no entanto, fiz isso,  e me arrependo.” (p. 658)
 
Radha Burnier sabe muito bem destes fatos. Ela seguramente leu o importante prefácio do seu pai ao livro de Sven Eek. Mas talvez ela não esteja preparada ainda para enfrentar as muitas consequências de admitir publicamente a verdade sobre o chamado “Processo Contra Judge”.
 
Mesmo uma só verdade, se ela disser respeito a uma questão crucial,  pode ser perigosa à corporação de Adyar, porque admiti-la levaria as pessoas a descobrirem outra verdade, que então as levaria a mais outra, e assim sucessivamente.  Aqueles que são  leais à organização não podem ser coerentemente leais à Verdade, porque a verdade é frequentemente nociva aos interesses das  burocracias. A longo prazo, no entanto, não há interesses burocráticos ou corporativos acima da verdade; e talvez mais algumas cartas anuais datadas de 13 de abril sejam suficientes para mostrar à sra. Radha Burnier e seus colegas que, na verdade, William Judge pertence mais ao futuro do movimento esotérico do que ao seu passado.
 
Enquanto isso, as cartas abertas irão também produzir uma consciência crescente, no movimento como um todo, sobre algo que hoje é mais atual do que nunca: o projeto e as metas originais do movimento fundado por H. P. Blavatsky, H. S. Olcott e W. Q. Judge.
 
NOTA:
 
[1] “Call To Reopen Judge Case”, em “Psypioneer buletin”, volume 2, number 4, April 2006, pp. 91-92.
 
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NOTA EDITORIAL DA REVISTA “FOHAT”
 
[O texto acima foi publicado pela revista canadense “Fohat”, edição de Summer 2007,   volume XI, número 2, pp. 38 a  41. No editorial da edição,  à p. 28, o editor da revista escreveu:]
 
“Carlos Cardoso Aveline nos traz ‘Cartas Anuais a Adyar: Sementes Para Um Melhor Diálogo no Movimento’. Outra vez, vemos o ato simbólico de uma campanha de cartas que visa registrar uma ideia ao longo do tempo; e espera-se que um  dia esta ideia tenha condições de crescer.  Nestes tempos de política e dissimulação, é difícil  acreditar  que todo líder deve ter  coragem moral para  enfrentar os erros do passado. No entanto, ainda  que os tempos atuais não sejam os melhores (e talvez sejam os piores), o símbolo pode viver mais tempo e encontrar sua oportunidade entre as gerações futuras, porque, em certo sentido,  os símbolos são eternos. Os atos simbólicos do nosso tempo irão viver mais tempo que todos os líderes teosóficos atuais, e talvez vivam mais  que algumas Sociedades que eles lideram, e pode ser que no futuro, em um ambiente mais acolhedor, deem frutos.”
 
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