A Dimensão Iniciática do Mundo das Águas
 
 
Carlos Cardoso Aveline
 
 
 
A carpa é originária da China
 
 
 
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Reproduzimos a seguir o capítulo nove
do livro “A Vida Secreta da Natureza”,
de Carlos Cardoso Aveline; terceira edição,
Editora Bodigaya, Porto Alegre, 2007, 156
páginas. O texto foi revisado pelo autor em 2020.
 
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Conta a tradição que em uma pequena cidade chinesa, no século 8 da era atual, vivia Shay Wei, um funcionário público de conduta exemplar.
 
Aos 29 anos de idade, ele tinha uma esposa bela e devotada e era chefe de seção no juizado de Ching-Cheng. A vida, porém, não é uma linha reta. Ela nos apresenta crises e oportunidades. Um dia Shay Wey amanheceu com febre alta. Uma semana depois, entrou em coma.
 
Com seu corpo abandonado e imóvel, Shay começou a sonhar. No sonho, apanhou sua bengala e saiu para passear. Usando seu corpo sutil, afastou-se da cidade sem obstáculos e caminhou até as margens do rio.
 
Cansado de sofrer devido à febre, agora Shay queria nadar livre e solto na água, à maneira de um peixe. Perguntou a si mesmo como seria a vida de um habitante das águas. Estava curioso: queria saber mais sobre a vida secreta daquele rio que amava desde a infância. Pensou nisso com força e uma divindade aquática apareceu diante dele. Conversaram.
 
Shay sentiu que seu desejo seria atendido. Então viu-se diante do Conselho Geral dos Seres da Água. Na assembleia, ouviu palavras elogiosas e recebeu autorização para viver como peixe “pelo tempo que desejasse”. Terminada a reunião, Shay descobriu que seu corpo havia mudado radicalmente: agora era uma enorme carpa navegando confiante pelo rio.
 
Ao levitar no ambiente aquático, Shay percebeu o universo desde um novo ponto de vista. A temperatura da água era perfeita. Com os olhos situados de cada lado da cabeça, seu campo de visão era total: 360 graus de visão a seu redor. Sentia-se bem na companhia dos outros peixes. Comunicavam-se instintivamente, sem necessidade de palavras. Shay explorou os cantos e recantos do rio, conheceu as sutilezas da água rasa e da água profunda e descobriu novas formas de alimentar-se. 
 
A vida é dinâmica: tudo se renova. Duas semanas depois, o contentamento inicial da liberdade havia passado. Shay queria aprender mais e renovar seus horizontes. Certa manhã, enquanto buscava comida, ele reconheceu o seu velho amigo Chao Kao, sentado à beira do rio. Chao Kao estava lançando à água um anzol com isca deliciosa. Shay nadou até lá e deu várias voltas em torno do anzol, observando o pedaço de alimento. Depois de alguns minutos, pensou: “Chao Kao é meu amigo. Se me pescar, direi quem sou e me soltará.” A fome havia vencido: a carpa abriu sua boca enorme e devorou a isca.
 
Shay sentiu a dor do anzol que rasgava a região do queixo e viu-se brutalmente retirado da água. Abriu a boca ferida para explicar quem era, mas nenhuma palavra quebrou o silêncio. Tentou de novo, e nada. Ele não conseguia respirar, enquanto seu bom amigo Chao Kao erguia-se do local fazendo planos para comer a carpa na próxima refeição.
 
A morte de um peixe fora da água ocorre muito lentamente. Algum tempo depois a carpa ainda tinha espasmos sobre a mesa da cozinha, enquanto eram reunidos os ingredientes para um prato de peixe com cebola. A dois quarteirões de distância, o corpo físico do funcionário Shay Wei agitava-se violentamente na cama. Finalmente, abriu olhos arregalados diante da esposa surpresa e, respirando com grande dificuldade, deu uma ordem:
 
“Corra até a casa de Chao Kao. Estão querendo preparar uma carpa com cebolas. Diga que abandonem imediatamente a ideia, devolvam a carpa viva ao rio e venham para cá, que explicarei tudo.”
 
No instante em que os amigos devolveram o peixe ao rio, Shay sentiu-se melhor e ergueu-se na cama. Quando contou a eles a história toda, nenhum deles duvidou. Se não fosse verdade, de que modo ele poderia ter sabido da pescaria e dos planos para o prato de carpa com cebola, enquanto seu corpo estava inconsciente? No mesmo dia, seus amigos e familiares deixaram de comer carne de peixe.
 
Shay e sua esposa tiveram vários filhos e uma longa vida feliz. Ele não deu importância alguma à cicatriz profunda que ficou para sempre na região próxima a seu queixo. Só sua esposa sabia que, à noite, enquanto seu corpo estava adormecido, ele voltava a viver como um peixe, nadando pelas águas sagradas do rio que amava. [1]
 
Este conto chinês tradicional tem diversos significados. O peixe, como a água, é um símbolo milenar que representa a fonte e a origem da vida, o renascimento e a purificação do indivíduo.
 
Os peixes também simbolizam a fertilidade. A vida planetária surgiu no mar. Uma vez começada a gestação, cada feto humano vive imerso no líquido amniótico da placenta materna. Assim, mergulhar nas águas simboliza muito mais que um simples ritual de batismo: representa um segundo nascimento e uma renovação interior. Do mesmo modo Shay Wei nasceu pela segunda vez e renovou-se ao abandonar seu corpo humano e transformar-se em peixe de um vasto rio. 
 
Na tradição esotérica oriental, a primeira grande iniciação ou expansão de consciência do aprendiz – no longo caminho da unidade com o cosmo – é chamada de srotapatti. Essa palavra sânscrita significa precisamente “aquele que entrou na corrente”, ou seja, aquele que mergulhou no rio sagrado da sabedoria – depois de abandonar a preocupação individualista consigo mesmo.
 
Na tradição hindu, um dos avatares ou manifestações do deus Vishnu surgiu na forma de peixe. No Egito antigo, na Mesopotâmia e entre os fenícios, havia peixes sagrados. Na Grécia antiga, o golfinho, mamífero marinho, simbolizava um salvador divino e era uma fonte de inspiração para o oráculo de Delfos.
 
No Antigo Testamento judaico e cristão, Jonas foi engolido por uma baleia e ficou dentro dela, orando a Deus, durante três dias e três noites, antes de ser vomitado em terra firme para que cumprisse a missão encomendada a ele pelo Senhor.
 
No cristianismo, o batismo se faz com água. Simbolicamente, os cristãos são como peixes cujas almas foram “pescadas” pelo Mestre Jesus. E a palavra grega Ichtus – que significa peixe – era vista pelos primeiros cristãos como a sigla de Iesus Christos Theou Uios Soter, ou seja, “Jesus Cristo, filho de Deus, Salvador”.
 
A água também era divina para os povos andinos. O Oceano Pacífico era a mãe-mar, Mamacocha. Os rios e lagos, filhos de Mamacocha, eram huacas ou divindades. O Sol e a Lua, que estavam entre os principais deuses dos Andes, tinham belíssimos templos nas duas ilhas do Lago Titicaca, onde também havia um refúgio sagrado, usado pelo Sol nos momentos difíceis da grande inundação planetária que destruiu Atlântida.
 
Na complexa mitologia da cultura andina quechua, a Via Láctea era um rio celestial, mayo, responsável pela regulação do ciclo da água em nosso planeta. O precioso “Manuscrito Huarochirí” revela que no centro do rio cósmico da Via Láctea vivia Yacana, o arquétipo celeste das lhamas andinas. A cada noite, Yacana descia até Mamacocha, o mar, e bebia grandes quantidades de água. Se Yacana não fizesse isso, haveria uma terrível inundação.[2]
 
Os mares e rios eram deuses na Grécia antiga, como na China. Em um velho conto taoista, um buscador da verdade deixa uma carreira de sucesso na cidade e medita anos a fio à beira de um córrego de águas puras. Certo dia, o espírito do córrego conversa com ele e passa a inspirá-lo com sua presença divina. Quando finalmente atinge a iluminação, o homem ri muito e exclama, dirigindo-se à alma do riacho:
 
“Ah, amigo! Por que não disseste antes? Na verdade não encontrei o Tao, a Verdade: apenas percebi que nunca o havia perdido! Quando sabemos acatar os fatos sem preocupações com prazer ou tristeza, então conquistamos o Caminho, e nascemos para a imortalidade. Gastar anos em busca do que nunca perdemos é, de fato, uma piada!” [3]
 
No capítulo oito do “Tao Teh Ching”, o clássico da tradição chinesa, o “velho mestre” Laotse afirma:
 
“O melhor entre os homens é como água. A água beneficia todas as coisas e não compete com elas. Ela se concentra nos lugares (baixos), que todos desprezam”.
 
O fundador do taoísmo acrescenta, segundo vemos no capítulo 66:
 
“Como foi que os grandes rios e mares passaram a ser os Senhores dos Vales? Foi sendo bons e mantendo-se nos lugares inferiores. Deste modo eles se tornaram os Senhores dos Vales. Portanto, para ser os primeiros entre as pessoas, devemos falar como se fôssemos inferiores a elas. Para ser os primeiros entre as pessoas, é preciso caminhar atrás delas. Desta maneira o Sábio permanece acima, e o povo não sente o seu peso (…). Porque ele não luta, ninguém no mundo pode lutar com ele.”
 
A água mostra como se pode ser não-violento.
 
“Não há nada mais fraco que a água”, ensina Laotse. “Mas ninguém é melhor que a água quando se trata de vencer o que é duro, e nada pode substituí-la. O fato de que a fraqueza supera a força, e a gentileza vence a rigidez, é algo que ninguém ignora e que ninguém leva em conta.” [4]
 
Como o resto do mundo, o Brasil ainda está aprendendo a respeitar os rios e o mar. Somos contraditórios: sabemos que a água é preciosa e mesmo assim a poluímos com efluentes industriais, esgotos e resíduos domésticos.
 
No plano da religiosidade popular, a cada dia 2 de fevereiro as festas de Iemanjá refletem a nossa incoerência. Com a ansiedade por homenagear a deusa das águas, o povo acaba lançando grande quantidade de lixo às praias e aos rios, algo que todos os deuses hídricos – inclusive Iemanjá – só podem reprovar.
 
Dentro de algum tempo compreenderemos que o nosso primeiro dever é não sujar os templos sagrados da natureza. E saberemos que a nossa maior e melhor homenagem ao aspecto divino das águas da vida está em preservar os recursos hídricos do planeta – começando pelos que estão mais próximos de nós. 
 
Enquanto isso, no vasto cerrado do centro-oeste, a cada mês de novembro a água faz renascer a paisagem, depois de seis meses sem chuva. Porém, para o povo da região nordestina – cuja seca é resultado do desmatamento dos tempos coloniais – a esperança de uma vida digna depende, em muitos locais, da escassa chuva ou dos poços artesianos.
 
De norte a sul do país, buscamos ao longo do verão a bênção e a proteção da água. Tomamos diversos banhos de chuveiro no mesmo dia, mergulhamos em piscinas, visitamos as praias de rios, nos banhamos em córregos e cachoeiras, ou bendizemos a água que cai do céu para aliviar o calor. Uma grande quantidade de gente procura estâncias de águas minerais – quentes e frias, radioativas ou não – e aproveita os seus efeitos curativos.
 
Milhões de pessoas se refugiam no litoral. Passeando pela beira da praia, observam o amanhecer ou o pôr do sol. Respiram profundamente o ar puro, olham o voo livre dos pássaros e sentem na pele a força curativa do vento e da água. Quando o sol alcança o horizonte, podem olhar diretamente o disco luminoso que dá vida ao nosso planeta.
 
Consciente ou inconscientemente, essa volta periódica ao mundo das águas tem uma dimensão religiosa – no sentido original da palavra. Através dela, fazemos a nossa religação com o ambiente natural e o cosmo; e também com o que há de mais profundo em nós.
 
NOTAS:
 
[1] Adaptação do texto “O Homem Que Virou Peixe”, conto tradicional chinês incluído no volume “A Deusa de Jade e Outros Contos Chineses Famosos”, de Lin Yutang, Ed. Pongetti, RJ, 1954, 294 páginas.  
 
[2] “The Huarochirí Manuscript”, a Testament of Ancient and Colonial Andean Religion, edição bilíngue em inglês e quechua, de Frank Salomon e George L. Urioste, University of Texas Press, EUA, 1991. Ver pp. 132-133, capítulo 29.
 
[3] Uma versão deste conto está no livro “Taoísmo, o Caminho Para a Imortalidade”, de John Blofeld, Ed. Pensamento, SP, pp. 93-94. É narrado também nas pp. 78-79 de “A Informação Solidária”, Carlos Cardoso Aveline, Edifurb, SC, 2001.
 
[4] Nestes três trechos citados de Laotse, veja “O Tao Teh Ching” na versão de Lin Yutang, capítulos 8, 66 e 78.
 
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O texto acima foi publicado nos websites associados dia 21 de outubro de 2020.
 
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Em relação ao caminho da felicidade, vale a pena lembrar destas palavras de Helena Blavatsky (foto): “Antes de desejar, faça por merecer”. 
 
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