Cidades Mais Solidárias
Surgirão Ao Longo do Século 21
 
 
 Carlos Cardoso Aveline
 
 
 
 À esquerda,  uma imagem de Lisboa. À direita, um
quadro de Mário Augusto Machado (Morani), de Nova Friburgo, RJ.
 
 
 
Os povos têm alma. As cidades têm alma. A ciência esotérica afirma que o próprio universo não só possui uma alma, mas evolui segundo um plano divino definido por ela. E também que nada pode existir sem uma essência sutil inspiradora, seja ela chamada de alma, espírito, buddhi ou mônada. É ela que define a razão de ser, a meta e o ideal de cada um de nós.
 
A alma está presente em todas as coisas, mas nem sempre somos capazes de aceitar este fato, e às vezes agimos como se o mundo fosse “desalmado”. Para perceber com nitidez a existência da alma fora de nós, é necessário fortalecer profundamente o contato com ela em nosso interior. Perceber é sempre uma questão de sintonia.
 
A compaixão e a solidariedade brotam quando nossa alma está presente de fato no modo como olhamos as coisas.
 
A palavra sânscrita namastê, uma saudação indiana tradicional, pode ser traduzida da seguinte maneira: “A alma imortal presente em mim saúda a alma imortal presente em você”.
 
Mário Quintana escreveu que a amizade sincera ocorre quando “a alma muda de casa”. Colocamos nossa alma em tudo aquilo com que nos identificamos.
 
Na Rússia antiga, a população era contada com ajuda dessa palavra: uma cidade tinha, por exemplo, cinco ou sete mil almas.
 
Desse ponto de vista, nenhuma crise ou grau de violência urbana pode alterar a realidade básica: as cidades brasileiras e portuguesas são conglomerados de almas e oceanos de energia espiritual e emocional. Os dramas que elas vivem constituem os desafios necessários para que a alma coletiva desperte, perceba o seu próprio potencial de paz e harmonia – e mude o mundo físico como consequência da sua mudança interior.
 
A alma coletiva de uma população urbana ameaçada pela contaminação ambiental, violência, pobreza e corrupção dos administradores está necessariamente confusa e desorientada. Mas ainda vive e espera por uma chance de viver melhor.
 
O escritor Júlio Verne estava certo ao afirmar que uma cidade é como um livro. A arquitetura, o trânsito de veículos e pessoas, os sons, a organização espacial e os fluxos energéticos de um ambiente urbano não ocorrem por acaso. São mensagens: são enigmas. Podemos decifrar seu significado, porque a alma humana em evolução se reflete dinamicamente em cada cidade com todas as suas luzes e sombras. Os sentimentos de poder, ambição, desânimo, amor, solidariedade e egoísmo constroem a cidade noite e dia, fazendo dela um cenário complexo que combina guerra e paz, decadência e renovação.
 
Há duas grandes tendências históricas perfeitamente legíveis no “livro” das nossas cidades. Uma é a desagregação geral de uma sociedade que só acredita em valores materiais e sensoriais, mesmo quando mantém uma crença formal ou verbal em Deus. O grande centro das atenções dessa sociedade é o dinheiro em si, desvinculado do bem comum a que deveria servir. O crime, as drogas e a violência são agentes dessa destruição. Dirigentes políticos e econômicos dão o exemplo, roubando, com diferentes graus de sutileza, o dinheiro do povo trabalhador. Incapazes de compreender essa tendência e de localizar a alternativa, os movimentos sociais articulam resistências simbólicas, verbais, e se acomodam ao processo enquanto sofrem a mesma desagregação em si mesmos.
 
A outra grande tendência visível nas cidades é a expansão e o surgimento (quase sempre em pequena escala) de relações de produção e laços humanos baseados em uma filosofia de vida que transcende o mundo visível dos cinco sentidos e busca valores permanentes.
 
A sociedade solidária deve surgir no meio da antiga, trazida por uma nova religiosidade vivencial e não-dogmática, pelos movimentos espiritualistas, a ioga, os livros de autoajuda, o desenvolvimento da inteligência emocional no trabalho e na família, os programas de estímulo à criatividade, a arte comunitária, a música new-age, a alimentação natural e integral, a economia solidária e a defesa do meio ambiente.
 
O novo e o velho estão presentes na cidade, e é preciso talento para focar nossa consciência onde realmente queremos. A alma inspiradora desligou-se de certas estruturas sociais e econômicas antigas, que por isso são sinais crescentes de “enlouquecimento” e se desagregam.
 
A alma da vida anima agora o que é novo. A alternativa surge em pequena escala, com os erros, as dúvidas e a falta de experiência típicos de toda tendência histórica que está começando. Mas as sementes da nova cidade já germinam dentro da velha e têm à sua disposição antigos modelos e arquétipos, alimentados durante milênios pelo constante sonho humano de uma fraternidade universal.
 
Os gregos buscavam a cidade ideal. Pitágoras fundou Crotona, uma cidade comunitária voltada para a sabedoria e que tinha cerca de duas mil pessoas, algo significativo para a época.
 
Platão e Plutarco escreveram sobre sociedades ideais. Os cristãos primitivos viviam em suas comunidades e tinham seus bens materiais em comum. Na Idade Média, a busca da comunidade perfeita continuou a ser incentivada pela vivência religiosa.
 
Em 1516, Thomas More criou sua “Utopia”, influenciado não só pelos sábios gregos, mas pelos relatos recentes de descobrimentos. Em sua ilha ideal, as casas não têm fechaduras ou cadeado, porque não há miséria social ou roubos. Em 1602, Tommaso Campanella escreveu “A Cidade do Sol” em um lugar incômodo onde a luz solar não chegava: sua cela de preso político, onde havia sido colocado pela Inquisição após liderar uma revolução que objetivara proclamar na Calábria uma república universal. Campanella foi tremendamente torturado e só escapou da morte porque se fingiu de louco: a Inquisição não matava alguém a quem considerasse insano. Décadas mais tarde, ele saiu da prisão e foi viver na França, protegido por Richelieu. Deu aulas na Sorbonne. [1]
 
Francis Bacon publicou em 1627 “A Nova Atlântida”, livro que descreve uma república ideal governada por sábios. Profeticamente, seus habitantes dispunham de aviões e submarinos.
 
Para que possamos compreender o futuro, a importância da contribuição de Thomas More, Tommaso Campanella, Francis Bacon e dezenas de outros pensadores e ativistas utópicos é enorme. Já no início do século 19, por exemplo, o industrial inglês Robert Owen proclamou:
 
“Chegou o momento em que uma mudança deve ser produzida. Uma nova era deve começar. O espírito humano, que até agora esteve envolvido nas trevas da ignorância, deve finalmente iluminar-se. É chegado o tempo em que todas as nações do mundo, em que todos os homens de todas as raças e de todos os climas sejam levados a um novo tipo de conhecimento. Haverá uma só linguagem e uma só nação. As grandes invenções modernas, os melhoramentos e o progresso contínuo das ciências técnicas e mecânicas (que, sob o regime do individualismo, aumentaram a miséria e a imoralidade dos produtores industriais) estão destinados, depois de ter causado tantos sofrimentos, a destruir a pobreza, a imoralidade e a miséria. As máquinas e as ciências são chamadas a fazer os trabalhos penosos e insalubres.” [2]
 
Dono de uma fortuna, Owen comprou uma grande extensão de terras nos Estados Unidos em 1825, e fundou a comunidade “New Harmony”. A experiência durou pouco: três anos depois ele havia perdido 80% da sua riqueza. Mas Owen não desistiu. Voltou para a Europa, prosseguiu expondo suas ideias de várias maneiras e é considerado um dos fundadores do socialismo. Depois de Owen vieram Charles Fourier e outros pensadores utópicos. Em seguida surgiram os chamados socialistas científicos: Karl Marx e Friedrich Engels queriam eliminar a contradição entre cidade e campo, dando o poder ao trabalhador.
 
Nenhum dos projetos urbanísticos e sociais voltados para a construção de uma cidade solidária e justa teve até hoje êxito marcante, no Ocidente capitalista, porque o pensamento humano não foi capaz de resolver de modo integrado e coerente os desafios psicológicos, espirituais, econômicos, políticos, culturais e urbanísticos que o ser humano enfrenta. Cabe abrir caminho para isso usando a força da boa vontade.
 
A chave do êxito é uma estratégia integrada por todos esses aspectos da vida. O pensamento holístico surgiu no século 20 e tem tudo para transformar-se em uma prática social vitoriosa ao longo do século 21. Ele traz consigo uma consciência multidimensional que reintegra o ser humano à natureza.
 
A partir das décadas de 1920 e 1930, o arquiteto norte-americano Frank Lloyd Wright elaborou uma proposta urbanística interessante para o futuro. Ele começa fazendo uma crítica da velha cidade, que se desagrega porque perdeu contato com a alma:
 
“A felicidade do cidadão convenientemente ‘urbanizado’ consiste em aglutinar-se a outros dentro da desordem, iludido pelo calor hipnótico e pelo contato forçado com a multidão. A violência e o rumor mecânico da grande cidade agitam sua cabeça ‘urbanizada’ e enchem seus ouvidos ‘urbanizados’, assim como outrora o canto dos pássaros, o sussurro do vento nas árvores, as vozes dos animais ou dos seres amados enchiam seu coração.(…) Assim, o cidadão verdadeiramente ‘urbanizado’, escravo do instinto gregário, está submisso a um poder estranho, do mesmo modo que o trabalhador medieval era escravo de um rei ou de um Estado.” [3]
 
A proposta de Wright é a ampliação do contato da cidade com os ritmos naturais da vida e, portanto, com o meio ambiente e a paisagem. Ele criou um arquétipo a que deu o nome de Broadacre. Ali, para cada habitante haveria uma superfície de um acre, isto é, de quatro mil metros quadrados. “Broadacre é a cidade natural da liberdade de espaço”, escreveu Wright.
 
E acrescentou:
 
“Se o livre acesso ao solo se baseasse em condições realmente democráticas, a arquitetura seria formulada a partir das condições naturais do terreno; os edifícios se assemelhariam, com infinita variedade de formas, à natureza e ao caráter do solo sobre o qual estivessem concluídos; seriam parte integrante dele. (…) Broadacre seria edificada em tal clima de simpatia para com a natureza que a sensibilidade própria do lugar e a sua própria beleza seriam exigência fundamental para a construção da cidade.”
 
Com a arquitetura orgânica, diz Wright, o homem recupera a posse da sua própria nobreza – e do seu território. Ele se torna mais um elemento vivo na paisagem, tal como as árvores, os rios e as colinas. Para isso, o solo precisa ser posto à disposição de todos, em condições justas.
 
Abolida a tirania do proprietário-fantasma de áreas de terra, “os edifícios se elevarão livremente dentro de espaços verdes ou se estenderão preguiçosamente pelo flanco das colinas, com as quais formarão um conjunto harmonioso. Que significado tem um edifício, se não está estreitamente vinculado ao solo em que se levanta?”, observa ele.
 
A cidade orgânica de Frank Wright parece seguir a filosofia do espaço natural da antiga China, que vem sendo estudada no Ocidente sob o nome de Feng Shui (literalmente vento e água, dois elementos dinâmicos em qualquer paisagem). Até o momento, a organização espacial das energias sutis através do Feng Shui tem sido utilizada principalmente dentro de casas e apartamentos. No futuro, a tendência natural talvez seja aplicar o Feng Shui em espaços urbanos abertos e no planejamento das cidades portuguesas e brasileiras. Ao mesmo tempo, outras iniciativas poderão aprofundar soluções e alternativas que já estão ao alcance da sociedade.
 
Pelo menos sete pontos podem ser acrescentados ao uso de Feng Shui e à proposta estratégica de uma cidade orgânica:
 
1 – Reforma agrária. Ela diminui a pressão sobre as cidades. Mas não basta distribuir terras. É preciso dar assistência técnica, criar relações de produção solidárias e transparentes, dar estímulos para que as famílias rurais permaneçam no campo, e garantir que a produção seja ecologicamente correta, preservando o ecossistema e produzindo alimentos sem agrotóxicos.
 
2 – Valorizar as comunidades rurais e as pequenas cidades do interior. Dar apoio às pequenas empresas familiares, ao trabalho artesanal e manual, à produção em pequena escala, com tecnologia tradicional, que dá emprego e valoriza o ser humano, e que predomina nas pequenas cidades. Substituir a adoração do que é “instantâneo” e da rapidez sem significado por algo que é mais valioso: o respeito à vida.
 
3 – Em todas as cidades e no campo, colocar a alta tecnologia a serviço da vida. A informatização e as novas tecnologias não devem mais provocar desemprego. Podem, isto sim, aumentar a qualidade e reduzir o preço dos bens e serviços prestados. Irão reduzir a jornada de trabalho, naturalmente sem redução do salário dos trabalhadores. Com o aumento da produtividade do trabalho nas últimas décadas, os lucros dos investidores aumentaram de modo absurdo. A distorção deve ser corrigida reduzindo a jornada de trabalho. Sindicatos e movimentos sociais devem ter a coragem de levantar essas questões. Os trabalhadores terão que aprender a usar bem o novo tempo de lazer – por exemplo em trabalho voluntário pela comunidade.
 
4 – Criar projetos habitacionais alternativos e voltados para a cidadania. O que nos impede, afinal, de organizar cooperativas habitacionais reunindo pessoas comprometidas com a construção de uma cidade fraterna? Nada, exceto o costume de esperar soluções vindas de cima para baixo. Ora, nenhum governante criará a cidade orgânica apenas por decreto. Ela terá que surgir com a prática autônoma dos cidadãos através de pequenos “territórios livres”, onde se vá acumulando a experiência do novo. Nesses novos empreendimentos, haverá graus diversos de socialização e ajuda mútua entre os vizinhos, reunindo-se as vantagens da vida comunitária com as vantagens na vida isolada.
 
5 – Na questão de segurança, o guarda do quarteirão. O policial ou guarda fica sempre no mesmo local, uma área de um ou dois quarteirões. Assim, ele conhece os moradores e o ritmo da vida das pessoas e facilmente percebe quando há algo estranho. Ele também pode ajudar em outras situações de emergência ou serviços básicos.
 
6 – Administração participativa. Reuniões por bairro e por quarteirão para discutir assuntos comuns e confraternizar. A experiência do orçamento participativo, em que cada bairro determina as prioridades de investimentos em sua área, é um precedente valioso para a cidade da nova era. Já teve êxito em capitais como Porto Alegre e Brasília. Na medida em que se resgate a ética social, essas experiências tendem a voltar.
 
7 – Redução da necessidade de viagens urbanas. A cidade e a atividade econômica devem ser planejadas de modo que os meios de transporte possam ser menos usados. A boa informação é útil neste ponto. Com a circulação mais fácil das informações via computador, telefone celular e internet, as pessoas podem trabalhar em casa, sem necessidade de provocar engarrafamentos e poluição atmosférica com automóveis. Isso não significa que as pessoas não sairão mais de casa: a vida no bairro será mais intensa. A bicicleta ganhará importância. Com a jornada de trabalho menor, todo o mundo terá mais tempo para participar das questões comunitárias e conviver com a natureza. Cada cidadão atuará multidimensionalmente, assumindo o papel de ativista social, ecologista, jogador de futebol, plantador de árvores ou jardineiro, além de pai, marido e amigo; e preservará a saúde fazendo exercícios físicos moderados.
 
Esses sete pontos são exemplos. Há outros por serem desenvolvidos. Desse modo a cidade voltará a respeitar sua alma. Cada casa será certamente um local mais pacífico e harmonioso, potencialmente um “templo”, como queria John Ruskin. A vida do cidadão ganhará um significado novo.
 
Falta pouco para que isso seja uma realidade mais palpável. Seguramente menos de um século. Para que isso ocorra sem demora será suficiente o uso maior e mais confiante da nossa criatividade e da nossa inteligência espacial, localizadas no hemisfério cerebral direito. É válida a decisão interna de fazer vitoriosamente aquilo que está ao nosso alcance, dentro do quadro referencial da sociedade solidária.
 
É possível que, enquanto não surgirem e amadurecerem novas práticas urbanas nas grandes cidades, muita gente continue transferindo residência para cidades menores ou para chácaras suburbanas, como ocorre hoje. Esta é outra maneira válida de retomar contato com os ritmos naturais da vida. Aos poucos, cresce o número de cidadãos que trabalham com terapias alternativas, agricultura orgânica ou pequenas casas comerciais e restaurantes. Vivem em paz, meditam, preservam a natureza e respiram livremente o ar puro. Outros fazem como determinada professora do Rio de Janeiro. Ao aposentar-se, ela foi viver na periferia de uma cidade pobre e violenta. Lá, com o apoio de amigos, abriu um centro de ação educacional para crianças e adolescentes pobres. Vivia feliz, profissional e pessoalmente: trabalhava com arte, expressando sua alma.
 
É assim que se cria a cidade da nova era. Não só criticando ou lamentando o que está velho e em desagregação, mas construindo com audácia o novo que cresce inevitavelmente a cada dia, de modo silencioso, quase invisível.
 
NOTAS:
 
[1] Veja “Viaje a Través de Utopia”, Maria Luisa Berneri, Editorial Proyección, Buenos Aires, 1962, 362 pp.; “Utopia”, Thomas More, Ed. Europa-América, Lisboa, 1973, 141 pp.; “A Cidade do Sol”, Tommaso Campanella, Edições de Ouro, 157 pp.
 
[2] “O Urbanismo”, Françoise Choay, Ed. Perspectiva, SP, 350 pp., 1997. Ver pp. 62-63.
 
[3] “O Urbanismo”, obra citada, pp. 236-237.
 
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Leia os livros “A Cidade na História”, Lewis Mumford, Martins Fontes/UnB, 1982, 741 pp.; “Os Socialismos Utópicos”, Jean-Christian Petitfils, Ed. Círculo do Livro, 187 pp.; “Viaje Por Icaria”, E. Cabet, Ediciones Folio, Barcelona, Espanha, dois volumes.
 
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Para conhecer a teosofia original desde o ângulo da vivência direta, leia o livro “Três Caminhos Para a Paz Interior”, de Carlos Cardoso Aveline.
 
 
Com 19 capítulos e 191 páginas, a obra foi publicada em 2002 pela Editora Teosófica de Brasília.
 
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