Ajuda Mútua Amplia a Eficiência da Ação Altruísta
 
 
Carlos Cardoso Aveline
 
 
A Arte de Liderar
 
 
 
Liderar é abrir caminhos. Todos os fatos da vida são acontecimentos coletivos, e ninguém fica de fora dos processos de liderança.
 
Os bandos de pássaros têm líderes. Os nômades têm líderes. Nas relações humanas, na família e no trabalho, é preciso tomar decisões e orientar a si mesmo e aos outros. Até mesmo dentro de nós diferentes pensamentos e sentimentos lutam a cada momento para “abrir caminho” e predominar.    
 
No entanto o tema da liderança é pouco discutido nos meios espiritualistas. Este silêncio aparentemente cômodo gera, na verdade, dois problemas centrais.
 
De um lado, um excesso de individualismo que nos leva a ignorar a importância das decisões e processos coletivos. Junto com esta omissão existe a perigosa fantasia de que o caminho da sabedoria pode ser trilhado isoladamente. 
 
De outro lado, a falta de clareza sobre os processos de liderança e tomada de decisão facilita a vida dos mecanismos autoritários e abre espaço para líderes “carismáticos” que se  comportam como iluminados, agem como se estivessem acima dos demais e não prestam conta do que fazem.
 
Estes dois erros se realimentam. Quanto mais rígidas forem as lideranças, mais haverá pessoas que desacreditam dos processos grupais, optando pelo isolamento.  No outro extremo, a busca de uma independência excessiva por parte do  indivíduo contribui para entregar os processos de decisão coletiva  a  dirigentes  despreparados,  ou autoritários, ou que reúnem estas duas características.
 
Daí a necessidade de compreender e melhorar os processos de “orientação coletiva” da vida. Do ponto de vista teosófico, não existe nada isolado. Tudo faz parte de conjuntos dinâmicos e multidimensionais, sem fronteiras fixas.  Cada ser humano é um amplo sistema coletivo de pensamentos, emoções, tendências, inclinações, metas, métodos, medos e ambições. E há certas emoções e pensamentos que lideram a vida em nós. À medida que cresce em todos os sistemas vitais  a consciência  sobre os  “processos de orientação e liderança”, tanto melhor.  A vida busca assim  com mais eficácia a sua meta natural, que é o aperfeiçoamento constante e ilimitado. Cada instância individual ou coletiva da vida passa a transformar, com maior eficiência, ignorância e sofrimento em sabedoria e paz interior.
 
A percepção de que a liderança é tanto interna quanto externa constitui uma chave para a  democracia e a harmonia nos processos coletivos. Só quem conhece e respeita seus próprios sentimentos pode respeitar os sentimentos dos outros, e só quem  debate as coisas da vida consigo mesmo  está preparado para debatê-las com os outros. A democracia não começa só na família. Começa em todas as dimensões da vida. A vida social é uma continuação por outros meios da vida psicológica e interior. E vice-versa. Os dilemas da civilização ocidental de hoje retratam no mundo externo o que vai dentro de cada cidadão. O autoexame coloca questões desafiadoras.  Somos honestos com nossos próprios sentimentos, ou distorcemos a realidade? Desistindo de manipular e vendo as coisas como são, ajudamos a purificar a atmosfera mental coletiva.
 
Na era da consciência planetária, os grupos e instituições espiritualistas não devem omitir-se em relação aos processos de liderança, que são grandes articuladores do carma coletivo, isto é, do processo total de ações e reações que determina o rumo da evolução humana.
 
Nosso destino  depende dos processos de tomada de decisão, e é alimentado a cada instante por ações físicas, emocionais e mentais, em grande e pequena escala. Estas ações  precisam ser reformuladas  para que  surja – sem atrasos – a era da paz e da solidariedade. Novas formas de liderança são necessárias. As mudanças são profundas  e não podem ocorrer sem lutas e resistências, dentro e fora de cada um de nós.
 
É verdade que os movimentos espiritualistas resgatam hoje tradições de sabedoria milenares. Isso não significa que eles devam ser politicamente retrógrados ou conservadores. A sabedoria eterna vive no momento presente e se renova a cada instante. Ela necessita de ar puro. Ela funciona como um fogo questionador que ilumina a vida e queima ilusões por onde passa. Mas do ponto de vista da preguiça mental é mais fácil imitar a forma externa do que perceber a essência da sabedoria. Em consequência disso, há um número considerável de candidatos a gurus e supostos iluminados disputando posições de liderança nos movimentos espiritualistas.
 
Esta competição por poder e espaço causa uma boa dose de confusão.  Além disso, frequentemente há uma tendência de idealizar líderes, movimentos ou instituições. Quanto maior a idealização, mais dolorosa a decepção que virá depois. Isto pode e deve ser evitado desde o início se houver eficácia e sentido prático. Quem não sobe a um pedestal não será derrubado. Quem não coloca ninguém na posição de ídolo não sofrerá grandes decepções. Uma coisa é certa: os sábios jamais se dedicam ao autoelogio. A vaidade “espiritual” é exclusividade dos tolos. Um autêntico mestre de sabedoria escreveu, certa vez:
 
“O falatório acerca dos ‘Mestres’ deve ser silenciosa mas firmemente eliminado. Que a devoção e o serviço sejam somente para aquele Supremo Espírito, do qual cada um é uma parte. Nós trabalhamos anônima e silenciosamente…”[1]
 
Não é necessário, nem recomendável, adotar uma pose de mestre para transmitir sabedoria. Uma das melhores maneiras de ensinar é pelo exemplo. Além disso, não só os movimentos espiritualistas mas toda as  instâncias da vida coletiva – desde creche e  universidade até firma comercial  e grupo  ambientalista – devem criar e manter atitudes abertas ao questionamento, à mudança e ao livre exame dos paradoxos e contrastes  da vida.
 
O êxito espiritual e a realização pessoal não são alcançados obedecendo mecanicamente a um líder carismático, um guru,  uma ideologia  ou à direção de uma instituição. Os movimentos da nova era e a espiritualidade do século 21 necessitam respirar o ar da liberdade intelectual e da independência pessoal, ao mesmo tempo que redescobrem o potencial ilimitado da prática da ajuda mútua, da comunhão, da tolerância e da solidariedade.
 
Há líderes “carismáticos” que se colocam como objetos de admiração e procuram rodear-se de  “assessores”  e “discípulos” incondicionais.  Ao ostentar de várias maneiras o seu suposto “status” espiritual, eles demonstram que estão agarrados à casca externa e sem vida da tradição de sabedoria. Reproduzem esquemas autoritários hoje desnecessários. Na falta do produto, vendem  a embalagem e as aparências. 
 
Para a verdadeira espiritualidade, entre as prioridades centrais estão a independência e o espírito crítico de cada caminhante. Porque, se o progresso espiritual não é autônomo, é falso. A sabedoria verdadeira está a serviço do despertar de cada buscador,  mas não se serve dele. Coloca-o no centro do aprendizado, e não na periferia do conhecimento.  Ela reforça a soberania pessoal, e não a retira; transmite a verdade gratuita e incondicionalmente, e não vende “status” ou garantias  ao buscador menos experiente.
 
A liberdade individual não provoca confusão coletiva, porque é compensada pela responsabilidade.
 
Cada instância de cooperação e convivência entre seres humanos exige compromisso e rumos claros. Questionar tem hora. A existência de líderes e de funções administrativas com suas responsabilidades específicas é natural. Ordem e responsabilidade são indispensáveis em todos os níveis. Mas deve haver transparência e prestação de contas. Além disso, a liderança sobre coisas concretas não pode ultrapassar o limite natural, nem suprimir a autonomia de cada um  nas questões psicológicas e espirituais. O bom líder não alega que “os outros não estão preparados para saber certas coisas”, nem insinua que “dizer a verdade irá prejudicar a instituição”.
 
A verdade nunca prejudica a sabedoria, mesmo quando é demolidoramente dura, embora muitas vezes ela só possa ser absorvida de modo gradual. É a falta de verdade e transparência  que mata os movimentos espiritualistas por dentro,  deixando apenas uma bela aparência externa.  Quando se começa a suprimir a verdade em qualquer processo coletivo – seja na vida emocional, profissional ou espiritual – surgem aparentemente sem motivo, mas  fortalecendo-se mutuamente,  o rancor, a intriga e a luta pelo poder.
 
Há uma relação direta entre fofoca e desconfiança, mas ambas surgem da falta de transparência e de sinceridade. Você começa suprimindo a verdade com o objetivo de “preservar” a harmonia – no casal, na família, no trabalho ou  no grupo espiritualista. Pouco depois  surgem a maledicência, a raiva e a luta pelo poder. Basta “apagar” uma verdade para que o mal-estar surja, mesmo que, inicialmente, ele seja subconsciente. Por isso todo líder deve evitar mentiras bem intencionadas.
 
A função de um líder é fazer os outros crescerem em sabedoria e autoconfiança. Devo usar minha influência sobre minha namorada ou esposa, por exemplo, para fazer com que ela vença seus próprios desafios e se realize, sendo feliz, o que a tornará  mais capaz de ser feliz na relação comigo. Tenho o direito de esperar dela uma atitude semelhante, em relação a mim. Esta expectativa recíproca deve ser colocada claramente como regra de jogo e  como princípio a ser respeitado nas diferentes instâncias da vida. Todos são gurus e discípulos. Somos pais e filhos, alunos e professores  uns dos outros. Saber deste fato, e colocá-lo como marco referencial da ação, é saudável porque é verdadeiro. Na sala de aula, o bom professor estimula nos alunos o hábito de pensar com autonomia. Ele tem suficiente confiança em si mesmo e na verdade para aceitar questionamentos e aprender com eles.
 
Um grupo saudável e aberto à verdade está livre de autoridades que policiam o pensamento das pessoas  e, portanto, nele ninguém é rotulado como “rebelde”. Isto não significa que um membro do grupo pode fazer absolutamente o que quiser. A liberdade se dá dentro dos limites referenciais definidos pelo grupo. A permanência de um indivíduo se justifica enquanto houver uma razoável  identidade de metas e de métodos. Neste contexto o pensamento deve ser livre, mas a ação, uma vez acertada de comum acordo, deve ser coordenada. Se eu não concordo com as metas e métodos de um movimento espiritualista, de uma empresa, ou de qualquer outro grupo humano, então devo seguir meu próprio caminho. Ficar e boicotear é sintoma de falta de respeito por mim mesmo e pelos outros. Afastar-me  a tempo e com inteligência desperta admiração e  respeito.
 
A questão da lealdade é decisiva para os grupos e relacionamentos humanos.  Ao discutir métodos de liderança no movimento esotérico, Christmas Humphreys escreveu que, no caminho espiritual, não deve haver uma lealdade externa e mecânica à instituição ou ao líder.[2] Toda lealdade, para ele, deve ser para consigo mesmo. Alguém só pode ser honesto com os  outros se, primeiro, for honesto com sua própria consciência. Nosso único e supremo mestre só pode ser a voz da nossa  própria consciência. É a ela que devemos obedecer.
 
A busca de poder pessoal também deve ser observada cuidadosamente. Ela costuma disfarçar-se sob aparências nobres e altruístas, mas a nossa capacidade de observação deve ser maior que a nossa vontade de enganar a nós próprios.
 
O poder que devemos buscar é criativo, solidário, altruísta, e não manipulador. Manipular os outros é sintoma de impotência interior. O bom líder não tem necessidade de dirigir o processo o tempo todo, mas usa sua força nos momentos críticos e nas questões fundamentais.
 
A necessidade de procedimentos éticos nos mecanismos de poder e liderança é um  enigma que devemos decifrar.  Somos todos líderes, porque tomamos decisões próprias e influenciamos decisões alheias. Mas como lideramos? Nossa atitude é sempre contagiosa: agindo com sinceridade, influenciamos positivamente a todos com quem entramos em contato. Então somos bons mestres e discípulos. Mas quando chegarmos ao auge da sabedoria talvez digamos a mesma frase famosa de Sócrates:
 
“Só sei que nada sei.”
 
Porque teremos percebido que é possível ter acesso à sabedoria, mas é impossível ser “dono” de qualquer parte importante dela. Então seremos capazes de liderar silenciosamente, como fazem os sábios. Eles raramente dão ordens, mas preferem inspirar ações através das suas atitudes diante da vida. E escolheremos nossos líderes entre aqueles que comprovaram ao longo do tempo terem intenções puras e um bom discernimento.
 
NOTAS:
 
[1] “Cartas dos Mestres de Sabedoria”, compiladas por C. Jinarajadasa, Editora Teosófica, Brasília, pp. 106-107.
 
[2] “A Liderança e a Lealdade”, de Christmas Humphreys. O artigo está disponível em www.FilosofiaEsoterica.com .
 
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Uma versão inicial do texto acima foi publicada em novembro de 2000 pela revista “Planeta”, de São Paulo. A presente versão foi publicada em dezembro de 2014.
 
Sobre o mistério do despertar individual para a sabedoria do universo, leia a edição luso-brasileira de “Luz no Caminho”, de M. C.
 
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Com tradução, prólogo e notas de Carlos Cardoso Aveline, a obra tem sete capítulos, 85 páginas, e foi publicada em 2014 por “The Aquarian Theosophist”.
 
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