A Ideia de Desenvolvimento Sustentável
Implica Uma Mudança de Visão do Mundo
 
 
Carlos Cardoso Aveline
 
 
 
 
 
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O texto a seguir reproduz o capítulo
seis da obra “A Vida Secreta da Natureza”,
de Carlos Cardoso Aveline (Ed. Bodigaya,
Porto Alegre, terceira edição, 2007, 157 pp.).
 
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Nota Editorial de 2017:
 
Ao contrário do que as aparências sugerem, as constantes catástrofes ambientais nas mais diversas regiões do mundo não são obras do acaso. É ingênua, ainda que bem-intencionada, a tentativa de reagir à crescente crise ambiental como se ela fosse apenas um amontoado de fatos isolados, que ocorrem por pura casualidade, mas não têm qualquer relação entre si nem com o nosso atual modelo de desenvolvimento. Precisamos de uma visão mais prática e mais eficaz do que esta. 
 
Os desastres naturais do momento atual resultam de uma estratégia de desenvolvimento econômico que produz ao mesmo tempo fenômenos externamente tão diversos e separados como injustiça social, ignorância espiritual, desmatamento, ausência de ética, violência urbana e contaminação do meio ambiente.
 
Tudo está interligado no universo: o bom senso e o realismo mandam olhar o conjunto. O potencial positivo do momento atual é percebido quando olhamos não só as árvores, mas o bosque em sua totalidade. A verdade é que a relação atual entre a sociedade consumista e materialista, de um lado, e as leis da natureza, de outro, está esgotada.
 
O texto a seguir é um convite prático para que, a partir do exame das consequências, se trate de compreender e eliminar as causas do sofrimento.
 
(CCA)
 
 
Um Compromisso com o Futuro
 
Quando se ouve a expressão “desenvolvimento sustentável”, não parece haver nada de revolucionário ou radical em torno da proposta. Quem poderia ser contra um desenvolvimento que “atenda às necessidades das gerações atuais, sem ameaçar o atendimento das necessidades das gerações futuras”? 
 
Ninguém, é claro. No entanto, esta ideia central desafia toda a lógica de mercado da sociedade antiga – voltada para o lucro pessoal e imediato dos mais astutos – e só vem crescendo no mundo de hoje graças a uma profunda mudança de mentalidade que transforma o cenário mundial a partir da atuação independente e criativa, desenvolvida em pequena escala. A estrutura do novo tecido social será de fato durável – “sustentável” – porque estará pautada pelo respeito a todas as formas de vida.
 
Sabemos, hoje, que a natureza obedece à lei do carma e nos trata do mesmo modo como a tratamos. Não podemos destruir a vida ao nosso redor e pensar que isso não terá consequências. Esta mesma compreensão fundamental, quando chega até o pensamento econômico, assume a forma de um compromisso com formas de desenvolvimento da vida material que sejam ecologicamente sustentáveis, isto é, duráveis.
 
A sociedade do século vinte só enxergava a curto prazo. O conceito de “desenvolvimento sustentável”, que aos poucos ganha espaço à margem das grandes estruturas de poder ostensivo, reverte profundamente a maneira como o homem moderno se coloca diante da passagem do tempo. E resgata uma velha proposta de Jacques Cousteau, para quem deveríamos nos comportar como se estivéssemos na presença das gerações do futuro, isto é, como se os habitantes do século 25, por exemplo, já estivessem conosco.
 
Para o sábio chinês Li Po, do século oito d.C., “o universo é um albergue para miríades de coisas, e o próprio tempo é um hóspede dos séculos em viagem”. Somos hóspedes, e não proprietários do planeta. Este hotel-escola existe em parte para nosso aprendizado, mas devemos obedecer às regras da casa.
 
Foi em 1984 que a Assembleia Geral da ONU constituiu a Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, presidida pela então primeira-ministra da Noruega, Gro Harlem Brundtland. A tarefa da “Comissão Brundtland” era propor estratégias ambientais de longo prazo para obter-se um desenvolvimento sustentável por volta do ano 2000. Depois de realizar audiências públicas em diversos continentes e ouvir os principais setores da sociedade e da economia, a Comissão lançou em 1987 o seu relatório final, chamado “Nosso Futuro Comum”[1]
 
O documento foi bem feito e formulou propostas realistas. Ficou provado, por exemplo, que crescimento econômico não é sinônimo de crescimento da poluição. Se a economia passar a produzir bens que não poluem – como carros movidos a energia solar e produtos para a informática -, a poluição deixará de crescer, enquanto a produção econômica avança. Ao mesmo tempo, é decisiva a revisão cuidadosa dos processos produtivos para que eles produzam mais com menor impacto ambiental.
 
É preciso reexaminar o que, para que, e como se produz; além de em que quantidades, e por que motivo produzimos este ou aquele item.
 
Por que e para que produzir armas nucleares? Este produto, por exemplo, não passa no exame. Armas nucleares são um pesadelo inútil.
 
Ninguém questionaria, é claro, a produção de alimentos. Mas, neste caso, a pergunta-chave é como produzir. E a resposta deve ser: “Vamos reexaminar os processos agrícolas e industriais de alimentos, para que eles tenham baixo impacto ambiental, respeitando a natureza e a saúde humana, porque também o corpo humano é um ecossistema cujo equilíbrio vital não tem preço”.
 
A agricultura deve ser feita por processos naturais, sem venenos. Reforma agrária não é só distribuir terras, mas também educar o produtor e estimulá-lo a produzir alimentos saudáveis, protegendo o equilíbrio ambiental para que a terra continue produtiva a longo prazo. 
 
No plano industrial, os alimentos devem estar livres – tanto quanto possível – de corantes, flavorizantes, conservantes, aromatizantes e outros aditivos químicos. Assim, cada atividade econômica deve passar por um exame ambiental e – sempre que necessário – ser redirecionada.
 
Mas “Nosso Futuro Comum” – um documento de consenso – teve de ignorar alguns pontos de importância decisiva. Quando se fala em “atender às necessidades das gerações atuais”, é preciso esclarecer que nem todas as necessidades são autênticas. Falsas “necessidades”, criadas artificialmente pelos mecanismos de propaganda, podem ser “fabricadas” muito mais facilmente do que os bens destinados a atendê-las.
 
Na verdade, o ser humano deve ter atendidas certas necessidades básicas, como trabalho digno, moradia, saúde, lazer, educação, cultura, liberdade de pensamento e de expressão. Ao mesmo tempo, a simplicidade voluntária deve substituir a ganância e a voracidade estimuladas pelos grandes grupos econômicos através dos meios de comunicação social.
 
Só superando o consumismo compulsivo poderemos construir uma civilização ecologicamente sustentável. Viver mais intensamente não deve ser confundido com possuir três carros em vez de um, ou cinco televisores, nem significa ter mais dinheiro do que o necessário, reunindo fortunas para criar uma autoilusão de poder.
 
Apesar de não haver atingido a perfeição absoluta, o relatório da Comissão Brundtland passou para a história como um dos melhores diagnósticos e programas de ação para a defesa da vida no planeta.
 
Ele é tão avançado que, como resposta ao seu lançamento em 1987, os governos, em vez de o colocarem em prática, decidiram fazer uma megaconferência ambiental. Foi então que a Conferência da ONU sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento – a Eco- 92 – começou a ser organizada. Falsos dilemas diplomáticos acabaram bloqueando os resultados da Eco-92, que caiu em relativo esquecimento após sua realização no Rio de Janeiro. Isto não interrompeu a mudança de mentalidade, que prosseguiu cada vez mais rapidamente em nível global. Mas a verdade é que as ações globais em grande escala só ocorrem muito lentamente. A rapidez e criatividade fluem em pequena escala. Em 2007, por exemplo, era possível observar que o ex-vice-presidente norte-americano Al Gore só alcançou uma grande eficácia em sua luta pelo planeta e pela civilização (compromisso que assumiu nos anos 1980) depois de abandonar os cargos públicos.
 
As máquinas burocráticas governamentais trituram boas intenções com grande voracidade. O fato também pode ser observado no Brasil, sempre que pessoas com nobres ideais “chegam ao poder”.
 
Em compensação, a coerência é possível na ação em pequena escala, e, quando esta é bem feita, alastra-se a seu devido tempo. Para isso, porém, é necessário resistir às tentações da “importância pessoal” e às luzes douradas dos palácios. Para chegar a um desenvolvimento sustentável é preciso, pois, resolver um desafio ético múltiplo. Uma sociedade ecologicamente sustentável deve ser também socialmente justa, politicamente democrática, e eticamente responsável. Estas diferentes questões são inseparáveis.
 
A revolução invisível que está ocorrendo nos liberta da ignorância em todos os setores ao mesmo tempo, e fortalece em nossas mentes e corações um compromisso sincero com os outros – o altruísmo. A nova revolução ocorre no plano mental e é interior. Não pode ser acelerada – nem evitada – com os instrumentos sutilmente autoritários de propaganda e manipulação semi-hipnótica das massas.
 
O despertar da nova consciência avança inevitavelmente, e cada aspecto da nossa economia está sendo repensado atualmente em função da sua variável ecológica. A revolução da informática é parte da revolução ecológica, porque tende a criar bens e serviços em um plano virtual e com menos impacto sobre o meio ambiente. Talvez dentro de um tempo cronologicamente curto tenhamos a massa crítica necessária para que a transformação seja conscientemente acelerada. Então daremos o devido valor a documentos como “Nosso Futuro Comum”, e os adaptaremos a cada cidade, estado ou província, ao mesmo tempo que os colocaremos em prática internacionalmente. Usaremos a televisão, o computador e a internet cada vez mais como instrumentos de educação e de ação para o bem. Os jornais diários deixarão de explorar as desgraças humanas ou focar em futilidades e expressarão em suas páginas o mesmo compromisso ético com o futuro.
 
Então faremos justiça, talvez, a um outro documento, ainda mais esquecido que “Nosso Futuro Comum”. Trata-se de “Cuidando do Planeta Terra – uma estratégia para o futuro da vida”, lançado em 1991 conjuntamente pela União Internacional para a Conservação da Natureza (UICN), Programa da ONU para o Meio Ambiente (PNUMA) e Fundo Mundial para a Natureza (WWF).[2] Escrito de forma mais clara e didática que “Nosso Futuro Comum”, o documento “Cuidando do Planeta Terra” começa dizendo:
 
“Todo ser humano é parte da comunidade de seres vivos. Esta comunidade interliga todas as sociedades humanas – gerações presentes e futuras – como também a humanidade com o restante da natureza.”
 
O documento defende a tese central da ecologia profunda, que se recusa a ver a natureza e os animais como meros instrumentos do bem-estar humano:
 
“Cada forma de vida deve ser respeitada, independentemente de seu valor para o homem. O desenvolvimento humano não deve ameaçar a integridade da natureza nem a sobrevivência de outras espécies. As pessoas devem tratar dignamente todas as criaturas e protegê-las da crueldade, evitando o sofrimento e a morte desnecessária”.
 
Propondo uma “ética mundial para viver de forma sustentável”, o documento aborda a necessidade de moderação e simplicidade em nossa relação com o meio ambiente:
 
“Todos devem ser responsáveis pelo seu próprio impacto sobre a natureza. Os recursos devem ser usados apenas nos níveis necessários e com eficiência, atentando para que o uso dos recursos renováveis seja sustentável”.
 
O texto adota a tese de Jacques Cousteau e fala sobre a nossa obrigação para com a humanidade do futuro:
 
“Todos devem ter como objetivo compartilhar os benefícios e custos do uso de recursos entre comunidades e grupos interessados, entre as regiões pobres e ricas, entre as gerações presentes e futuras. Cada geração deve deixar para sua sucedânea um mundo pelo menos tão diverso e produtivo quanto aquele que herdou. A proteção dos direitos humanos e do restante da natureza é responsabilidade de âmbito mundial que transcende as fronteiras culturais, ideológicas e geográficas. A responsabilidade é tanto coletiva como individual.”
 
“Cuidando do Planeta Terra” descreve os problemas e levanta soluções práticas nos campos energético, industrial, comercial, agrícola, florestal, na questão da água doce e dos oceanos, e mostra de que modo a comunidade humana pode organizar-se em função da ideia central do desenvolvimento sustentável.
 
Era um texto demasiado bom para que fosse compreendido e levado a sério na década em que foi lançado. Seria exigir demais dos nossos dirigentes que pensassem no futuro de maneira sadia, a menos que sejam obrigados a isso pelos fatos do dia-a-dia. Por isso o despertar tem avançado através de pequenos eventos e iniciativas, que se alastram silenciosamente e sem chamar atenção de quem não tem olhos para ver.
 
Há um tempo para tudo e haverá um tempo para que a proposta de desenvolvimento sustentável seja aplicada em todo o mundo, respeitando as peculiaridades locais. Cada pessoa que assume interiormente um compromisso com o futuro da Terra faz com que o nascimento da nova civilização fique um pouco mais próximo. Chegado o momento, veremos que a humanidade já não precisa evoluir tanto através da dor, mas pode avançar mais rapidamente pela prática da fraternidade e da cooperação. 
 
NOTAS:
 
[1] “Nosso Futuro Comum”, Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1988, 430 pp.
 
[2] “Cuidando do Planeta Terra”, UICN, PNUMA, WWF, São Paulo, Maio de 1992, 246 pp.
 
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Sobre a ecologia da mente e a teosofia do ambiente natural, veja o livro “A Vida Secreta da Natureza”, de Carlos Cardoso Aveline.
 
 
A obra foi publicada pela Editora Bodigaya, de Porto Alegre, tem 157 páginas divididas por 18 capítulos, e está na terceira edição, de 2007.
 
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