Uma Cordilheira Desafia a Eternidade
E Parece Abrir as Portas Para o Infinito
 
 
F. D’Almeida
 
 
 
O morro andino Aconcágua, em Mendoza
 
 
 
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Nota Editorial de 2017:
 
O clássico texto a seguir é reproduzido da
revista portuguesa “O Occidente”, número
25, Lisboa, primeiro de janeiro de 1879,
páginas 6 e 7. A ortografia foi atualizada.
Acrescentamos notas explicativas.
 
(Carlos Cardoso Aveline)
 
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Os Andes
 
Estou cansado deste espaço, desta imensidade!
 
– Que direi eu, que vivo aqui há tantos anos, alongando o olhar pelas águas do Prata ou pela grama da campina, vendo sair o sol das ondas do rio para o ver sumir-se entre celagens [1] terrosas e opacas, além nos confins desta planície… Que saudades tenho das montanhas…
 
Se lá vivesse, sentiria a falta da Pampa.
 
– Engana-se. Nas montanhas acha-se a gente rodeada pela alma da nossa mãe, que nos envia os suspiros do seu coração envoltos no fogo dos seus vulcões, que nos regenera com a seiva das suas entranhas vertida nas fontes de vida que manam dos seus montes e que nos alenta com o espírito das suas selvas. Nós, os montanheses, vivemos a vida das nossas montanhas, somos orgulhosos como elas, temos a sua gravidade séria e risonha, amamos-lhes a luz e as sombras…”
 
Era um filho dos Andes quem assim falava.
 
Efetivamente nas montanhas o homem encontra horizontes vastos, de que se apossa, que toca como se fossem propriedade sua; sente-se acompanhado pelas colinas graciosas, de vertentes circulares e suaves, pelos picos selvagens, pelos bosques isolados, pelos tabuleiros de verdura; acha por toda a parte a animação buliçosa da natureza, nas vozes da corrente que se desata furiosa por entre as rochas das quebradas, nos ruídos das auras que folgam nas selvas, nos zumbidos do vento que açoita os cumes sinuosos. Tudo é variedade: o belo ao lado do sublime, o ameno e agradável após o adusto e fero, as sombras no meio da luz torrencial refletida pelos cimos nevados, o silêncio do bosque em cima do bramido da corrente e debaixo do furacão que silva nos picos alterosos.
 
Nas Pampas está a imensidade, a solidão, o silêncio, a opressora igualdade de lugar e de tempo.
 
O que há na natureza que se possa comparar com um vale perdido entre cadeias andinas? Ali, em uma sinuosidade que as serras apertam em seus braços marmóreos, existe um pequeno paraíso que só é visto pelo sol, pela lua e por alguns astros que tiveram a ventura de se colocar em seu zênite. Um arroio de prata serpenteia em um leito de areias douradas e de pedrinhas de todas as cores, entre bosques amenos e ao pé de colinas aprazíveis que mal se elevam, simulando em suas formas arredondadas os seios da mãe Ceres [2]. Prados de verdura ali se ocultam. A corrente ruge aos pés da serra, perdida entre as brenhas e os boldos gigantescos. O zéfiro [3] produz sons indefiníveis, perfumando a pradaria com um hálito carregado do aroma das árvores, em cuja folhagem se recreia. O sol inunda todo o vale, avivando as cores da verdura e penetrando nas sombras do bosque, cujas folhas movíveis quebram em mil prismas os raios da luz e dão-lhes a aparência de uma chuva de agulhas frágeis de prata e ouro, de rubis e esmeraldas, de opalas e brilhantes, que ofuscam a vista. Encantos da luz! Como alternais com os ruídos harmoniosos da natureza e com os embriagantes odores da vegetação naqueles vales encantados que os Andes guardam em seus seios!
 
Nenhuma destas belezas se encontra na Pampa, que eu atravessava na primavera de 1874, em direção aos Andes. Já nos ficavam ao sul os extensos páramos; o caminho cortava um terreno acidentado e a vista descansava nos cerros do Morro, nos bosques do Rio Quinto e na Ponta de S. Luiz, ao norte da qual se destacam a grandes distâncias, como sentinelas seculares, alguns cones majestosos, que se erguem, isolados e solitários no meio das Pampas. Mas os Andes ainda não apareciam.
 
Uma tarde, ao pôr do sol, apeávamos na porta do Desaguadero, de onde, dizia-me o meu companheiro, eu devia avistar as cordilheiras. À medida que o astro descia em um horizonte brumoso, desenhava-se nos céus uma cúpula enorme, um hemisfério, que mais parecia uma ilusão de ótica. Era o Tupungato que estava oculto pela névoa da tarde, e que erguia a sua cabeça no horizonte opaco, como se estivera pendente do firmamento e separado do mundo. Com o crepúsculo subiram novos vapores que velaram aquele portento, deixando-me uma religiosa impressão. Entrevira os Andes!
 
No outro dia fiz o caminho em constante ansiedade, divisando por momentos alguns cimos nevados, quando as árvores ou a poeira o permitiam. Mas na manhã seguinte, o espetáculo era imponente: os olhos abraçavam uma extensão dilatadíssima da cadeia andina.
 
O que são os Alpes vistos de Clarens, comparativamente com os Andes observados da desafrontada campina de Mendoza?! Diante daqueles, pôde Byron soltar uma exclamação. Na presença dos Andes, emudece a alma, não assoma a palavra aos lábios, porque a impressão que se sente não tem linguagem.
 
Uma cadeia imensa de brilhantes colossais cruza o horizonte, na altura dos céus, até aonde a vista pode alcançar do austro ao setentrião [4]. As linhas circulares e suaves do cerro de Tupungato contrastam com os picos angulosos da serra das Vacas e com a ponta caprichosa do Aconcágua, que, mais ousado que todos, se remonta à região do éter, mostrando o último esforço que a terra fez para alcançar os domínios do sol. Pelo sul prolongam-se até perder-se de vista, os esbeltos cerros, os grupos de picos, figurando o conjunto das torres de uma cidade aérea, as curvas sinuosas que ora se remontam, ora descem, desenhando de prata o azul da atmosfera.
 
Salve, portentosos Andes! Caio, enfim, em vossos braços, a sentir o afago das vossas brisas! Salve geradores da vida, que distribuis os climas e os ventos, o calor e a água, que formais os vales temperados das messes [5] e as ardentes estâncias do café, do ananás e da chirimoya! [6] Sois a imagem do infinito, centro de poesia e de verdade, que afrontastes os séculos de uma eternidade, sempre portentosos e belos!
 
O grandioso diminuía à medida que avançávamos. O panorama portentoso mudara nas imediações da cidade. As ásperas colinas do Challado e os adustos cerros do rio ocultavam a cordilheira, e só por detrás delas se viam as cabeças nevadas da serra das Vacas.
 
“Não há grandeza que não diminua quando se toca, exclamou o meu companheiro. Os montanheses vivem em familiaridade íntima com os cumes das suas montanhas.”
 
(F. D’Almeida)
 
NOTAS:
 
[1] Celagensas cores do céu ao amanhecer e no pôr do sol. (CCA)
 
[2] CeresDeusa romana da Agricultura. A palavra “cereais”, por exemplo, deriva do nome “Ceres”. (CCA)
 
[3] Zéfiro – vento suave. (CCA)
 
[4] Do austro ao setentrião – isto é, de sul a norte. (CCA)
 
[5] Messes – seara madura. (CCA)
 
[6] Chirimoya – árvore frutífera dos Andes. (CCA)
 
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